(Foto: Reprodução | Reuters)
A reportagem de capa da revista Veja que começa a circular nesta
sexta-feira confirma que o ex-juiz Sergio Moro cometeu crimes na condução da
Lava Jato com o objetivo de prender o ex-presidente Lula e, por consequência,
fraudar as eleições presidenciais de 2018
5 de julho de 2019
A edição
desta revista Veja que começa a circular nesta sexta-feira (5) traz uma
reportagem especial assinada por Glenn Greenwald, Edoardo Ghirotto, Fernando
Molica, Leandro Resende e Roberta Paduan que confirma o que foi dito pelo
deputado Glauber Braga, nesta semana, na Câmara dos Deputados. O ex-juiz Sergio
Moro, hoje ministro da Justiça, foi um "juiz ladrão". Confira,
abaixo, a íntegra da reportagem, disponibilizada por Veja de forma aberta a
todos os leitores:
As manifestações
do último dia 30 tiveram como principal objetivo a defesa de Sergio Moro. Em
Brasília, um enorme boneco de Super-Homem com o seu rosto foi inflado na frente
do Congresso. Símbolo da Lava-Jato, que representa um marco na história da luta
anticorrupção no país, o ex-juiz vem sofrendo sérios arranhões na imagem desde
que os diálogos entre ele e membros da força-tarefa vieram a público revelando
bastidores da operação. As conversas ocorridas no ambiente de um sistema de
comunicação privada (o Telegram) e divulgadas pelo site The Intercept Brasil
mostraram que, no papel de magistrado, Moro deixou de lado a imparcialidade e
atuou ao lado da acusação. As revelações enfraqueceram a imagem de correção
absoluta do atual ministro de Jair Bolsonaro e podem até anular sentenças.
No material que
o Intercept diz ter recebido de uma fonte anônima, há quase 1 milhão de
mensagens, totalizando um arquivo com mais de 30 000 páginas. Só uma pequena
parte havia sido divulgada até agora — e ela foi suficiente para causar uma
enorme polêmica. Em parceria com o site, VEJA realizou o mais completo mergulho
já feito nesse conteúdo. Foram analisadas pela reportagem 649 551 mensagens.
Palavra por palavra, as comunicações examinadas pela equipe são verdadeiras e a
apuração mostra que o caso é ainda mais grave. Moro cometeu, sim,
irregularidades. Fora dos autos (e dentro do Telegram), o atual ministro pediu
à acusação que incluísse provas nos processos que chegariam depois às suas
mãos, mandou acelerar ou retardar operações e fez pressão para que determinadas
delações não andassem. Além disso, revelam os diálogos, comportou-se como chefe
do Ministério Público Federal, posição incompatível com a neutralidade exigida
de um magistrado. Na privacidade dos chats, Moro revisou peças dos procuradores
e até dava bronca neles. “O juiz deve aplicar a lei porque na terra quem manda
é a lei. A justiça só existe no céu”, diz Eros Grau, ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal, falando em tese sobre o papel de um magistrado. “Quando o
juiz perde a imparcialidade, deixa de ser juiz.”
Não seria um
escândalo se um magistrado atuasse nas sombras alertando um advogado de que uma
prova importante para a defesa de seu cliente havia ficado de fora dos autos?
Pois isso aconteceu na Lava-Jato, só que em favor da acusação. Uma conversa de
28 de abril de 2016 mostra que Moro orientou os procuradores a tornar mais
robusta uma peça. No diálogo, Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa em
Curitiba, avisa à procuradora Laura Tessler que Moro o havia alertado sobre a
falta de uma informação na denúncia de um réu — Zwi Skornicki, representante da
Keppel Fels, estaleiro que tinha contratos com a Petrobras para a construção de
plataformas de petróleo, e um dos principais operadores de propina no esquema
de corrupção da Petrobras. Skornicki tornou-se delator na Lava-Jato e
confessou que pagou propinas a vários funcionários da estatal, entre eles
Eduardo Musa, mencionado por Dallagnol na conversa. “Laura no caso do Zwi,
Moro disse que tem um depósito em favor do Musa e se for por lapso que não foi
incluído ele disse que vai receber amanhã e da tempo. Só é bom avisar ele”,
diz. (VEJA manteve os diálogos originais com eventuais erros de digitação e
ortografia.) “Ih, vou ver”, responde a procuradora. No dia seguinte, o MPF
incluiu um comprovante de depósito de 80 000 dólares feito por Skornicki a
Musa. Moro aceita a denúncia minutos depois do aditamento e, na sua decisão,
menciona o documento que havia pedido. Ou seja: ele claramente ajudou um dos
lados do processo a fortalecer sua posição.
Em sua defesa
após o estouro do escândalo das mensagens, o ministro vem repetindo que atendia
tanto os encarregados da acusação quanto os da defesa no dia a dia e tinha
conversas com eles, nenhuma delas imprópria, na sua visão. De fato, está na
rotina de um juiz receber as partes envolvidas no processo, mas de maneira
oficial, sempre com registro, e não por meio de um sistema privado de
comunicação. A posição do ex-juiz fica ainda mais difícil de defender diante
dos dados analisados pela parceria VEJA/The Intercept. Não eram conversas
protocolares entre juiz e Ministério Público. Do conjunto, o que se depreende,
além de uma intimidade excessiva entre a magistratura e a acusação, é uma
evidente parceria na defesa de uma causa. Os exemplos mais robustos vêm das
conversas entre Moro e Dallagnol. Em 2 de fevereiro de 2016, por exemplo, o
juiz escreve a ele: “A odebrecht peticionou com aquela questao. Vou abrir prazo
de tres dias para vcs se manifestarem”. Dallagnol agradece o aviso. Moro se
refere ao questionamento da Odebrecht à Justiça da Suíça a respeito do
compartilhamento de dados, incluindo extratos bancários, da empresa naquele
país. Grosso modo, a empreiteira tentou impedir que o Ministério Público suíço
enviasse dados à força-tarefa.
Preocupado com a
história, Moro pede notícias a Dallagnol no dia 3. “Quando sera a manifestação
do mpf?”, pergunta. “Estou redigindo, mas quero fazer bem feita, para já
subsidiar os HCs que virão. Imagino que amanhã, no fim da tarde”, responde o
procurador. No dia seguinte, Dallagnol informa a Moro que a peça estava quase
pronta, mas dependia ainda da revisão de colegas. “Protocolamos amanha, salvo
se for importante que seja hoje. Posso mandar, se preferir, versão atual por
aqui, para facilitar preparo de decisão”, escreve. Moro tranquiliza Dallagnol:
“Pode ser amanha”. No dia 5, prazo final, por volta das 15 horas, Dallagnol
manda pelo Telegram ao juiz a peça “quase pronta”. A situação é completamente
irregular. Em vez de se comunicarem de forma transparente pelos autos, juiz e
procurador usam o Telegram. Como se não bastasse, o chefe da força-tarefa
ainda envia a Moro uma versão inacabada do trabalho para que o juiz possa
adiantar a sentença.
Dentro da
relação estabelecida pela dupla, chama atenção também o momento em que
Dallagnol dá dicas ao “chefe” sobre argumentos para garantir uma prisão. Isso
aconteceu em 17 de dezembro de 2015, quando Moro informa que precisa de
manifestação do MPF no pedido de revogação da prisão preventiva de José Carlos
Bumlai, pecuarista e amigo de Lula. “Ate amanhã meio dia”, escreve. Dallagnol
garante que a ação será feita e acrescenta: “Seguem algumas decisões boas para
mencionar quando precisar prender alguém…”. À luz do direito, é tão
constrangedor quanto se Cristiano Zanin Martins fosse flagrado passando a Moro
argumentos para embasar um habeas-corpus a favor de Lula.
Mesmo entre
parceiros com bastante afinidade há momentos de tensão (e que precisam ser
resolvidos com uma conversa ao vivo). Em um deles, ocorrido em um chat de 17 de
novembro de 2015, Moro dá um puxão de orelha em Dallagnol. O juiz reclama de
que está difícil entender os motivos pelos quais o MPF recorreu da sentença
aplicada aos delatores Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, Pedro José Barusco
Filho, Mário Frederico Mendonça Góes e Júlio Gerin de Almeida Camargo.
Dallagnol tenta se justificar, sem sucesso. “O mp está recorrendo da
fundamentação, sem qualquer efeeito pratico”, critica o juiz. “Na minha opinião
estao provocando confusão.” Para Moro, o efeito prático do recurso apresentado
pelo MPF será “jogar para as calendas a existência execução das penas dos
colaboradores”, ou seja, postergará o início do cumprimento da pena aplicada
aos delatores citados. Mais uma vez, tudo fora dos autos. Dallagnol,
resignado, pede um encontro com Moro para a manhã do dia seguinte: “25m seriam
suficiente (sic)”.
Peças
fundamentais na Lava-Jato, as delações exigem também que o juiz se comporte de
forma imparcial e somente após as negociações, conduzidas pelo MPF, pois ao fim
do processo caberá a ele decidir se aceita ou não a oferta. Nesse capítulo,
Moro cruzou igualmente a linha, a exemplo do caso do ex-deputado Eduardo Cunha.
Na noite de 12 de junho de 2017, Ronaldo Queiroz, procurador da força-tarefa da
Lava-Jato na PGR, cria um grupo no Telegram com Dallagnol para avisar que foi
procurado pelo advogado de Cunha para iniciar uma negociação de delação
premiada. Queiroz afirma que as revelações poderiam ser de interesse dos
procuradores de Curitiba, Rio de Janeiro e Natal, onde corriam ações
relacionadas ao político. Após membros do Rio de Janeiro serem incluídos no
grupo, Queiroz posta uma mensagem que dá uma ideia de sua visão de mundo sobre
a quantidade de honestos na Justiça e na política (uma visão de mundo
compartilhada por muitos de seus colegas da Lava-Jato). Queiroz afirma esperar
que Cunha entregue no Rio de Janeiro, pelo menos, um terço do Ministério
Público estadual, 95% dos juízes do Tribunal da Justiça, 99% do Tribunal de
Contas e 100% da Assembleia Legislativa.
No dia 5 de
julho, durante o período da tarde, os procuradores concordam em marcar uma
reunião com o advogado Délio Lins e Silva Júnior para a terça-feira seguinte
(11 de julho). Naquele mesmo dia, às 23h11, em uma conversa privada, Moro
questiona Dallagnol sobre rumores de uma delação de Cunha. “Espero que não
procedam”, diz. Dallagnol afirma que tudo não passa de rumores. Ele confirma
ao juiz que está programado apenas um encontro com o advogado para que os
procuradores tomem conhecimento dos anexos. “Acontecerá na próxima terça.
estaremos presentes e acompanharemos tudo. Sempre que quiser, vou te colocando
a par”, afirma. Moro, então, reitera seu posicionamento. “Agradeço se me manter
(sic) informado. Sou contra, como sabe.” Detalhe: isso sem saber o conteúdo.
Como a proposta
de delação atingia políticos com foro privilegiado, a palavra final para
assinar um acordo de delação com Cunha passou para a PGR. A homologação
competia ao ministro Luiz Edson Fachin, relator da Lava-Jato no STF. O
ex-deputado corria na época para fechar um acordo antes de o doleiro Lúcio
Bolonha Funaro assinar os termos de sua delação. Os procuradores envolvidos nas
negociações diziam que a dupla falava sobre os mesmos temas, o que tornaria
desnecessária a aprovação das duas colaborações. No dia 28 de julho, já com os
anexos de Cunha em mãos, Ronaldo Queiroz diz que a ideia é analisá-los em
conjunto com os colegas para tomar uma decisão sobre aceitar ou rejeitar a
delação. Em 30 de julho, Queiroz diz que o material é fraco. No dia seguinte,
uma mensagem do procurador Orlando SP, provavelmente Orlando Martello Júnior,
traz o posicionamento de Curitiba — o mesmo de Moro: “Achamos que o acordo deve
ser negado de imediato”.
O papel de líder
da Lava-Jato em Curitiba é exercido em diversas oportunidades pelo ex-juiz. Em
mais de uma ocasião, Moro aparece nos chats do Telegram interferindo na agenda
dos procuradores da força-tarefa, outra atitude que gera a suspeição de
qualquer magistrado. Em 7 de julho de 2015, por exemplo, um membro da
força-tarefa, que a reportagem de VEJA identificou ser o procurador Carlos
Fernando dos Santos Lima, escreve o seguinte: “Igor. O Russo (Moro) sugeriu a
operação do professor para a semana do dia 20”. Igor (o delegado da Polícia
Federal Igor Romário) responde: “Opa… beleza… Vou começar a me organizar”. De
acordo com a apuração da revista, o “professor” era o almirante Othon Luiz
Pinheiro da Silva, da Eletronuclear. Ele acabou sendo preso no dia 28. Em outro
episódio, Moro não apenas sugere uma data para a operação como também já fala
em receber a denúncia. O caso em questão aparece em um diálogo ocorrido em 13
de outubro de 2015. Nele, o procurador Paulo Galvão, o PG, alerta Roberson Pozzobon,
seu colega da força-tarefa, sobre uma orientação do juiz. “Estava lembrando
aqui que uma operação tem que sair no máximo até por volta de 13/11, em razão
do recesso e do pedido do russo (Moro) para que a denúncia não saia na última
semana”, escreve PG. “Após isso, vai ficar muito apertado para denunciar.”
Pozzobon concorda com PG e acrescenta: “uma grande operação por volta desta
data seria o ideal. Ainda é próximo da proclamação da república. rsrs”.
A partir de um
levantamento das operações ocorridas em novembro e das denúncias oferecidas em
dezembro de 2015, chega-se à conclusão de que o diálogo trata da Operação Passe
Livre, que prendeu José Carlos Bumlai. Ele atuou como laranja do PT,
intermediando um empréstimo de 12 milhões de reais do Banco Schahin ao partido
em 2004. O pedido de Moro comentado na conversa entre PG e Pozzobon acabou
cumprido à risca. Bumlai foi preso em 24 de novembro e denunciado em 14 de
dezembro — na última semana antes do recesso da Justiça Federal do Paraná. No
dia seguinte, Moro recebeu a denúncia, a tempo de impedir que os crimes
prescrevessem no fim de 2015.
Dentro de uma
visão simplista, a estratégia parece um golpe de mestre do juiz para não deixar
um bandido escapar da Justiça. Mas o argumento de que os fins justificam os
meios não pode prosperar numa sociedade desenvolvida. Tal postura de Moro viola
o devido processo legal, pondo em risco o estado de direito. “Nesse caso, a
sociedade pode aplaudir o juiz, por acreditar que ele está tentando ser justo.
Mas ele está infringindo as leis do processo, que o impedem de imiscuir-se em
uma das partes e colaborar com ela, e é uma das garantias para que todos sejam
julgados da mesma forma”, afirma um juiz, que pediu para não ser identificado.
“Imagine que todos os magistrados atuem da mesma forma, infringindo uma regra
aqui e outra ali para alcançar seus objetivos. Um pode se aliar à defesa para
soltar um criminoso; outro pode se aliar à acusação para perseguir um inimigo
e, aí, o céu é o limite”, conclui.
Uma das
obsessões de Moro envolvia manter os casos da Lava-Jato em seu poder em
Curitiba, a exemplo dos processos de Lula do tríplex do Guarujá e do sítio de
Atibaia. Nesse esforço, o magistrado mentiu a um ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) ou, na hipótese mais benigna, ocultou dele uma prova importante,
conforme mostra um dos diálogos. A conversa em questão se refere ao caso de
Flávio David Barra, preso em 28 de julho de 2015, quando presidia a AG Energia,
do grupo Andrade Gutierrez. Sua detenção ocorreu na Operação Radioatividade,
relacionada a pagamentos de propina feitos por empreiteiras, entre elas a
Andrade Gutierrez, a Othon Luiz Pinheiro da Silva, da Eletronuclear,
responsável pela construção da usina nuclear Angra 3. Em 25 de agosto, a defesa
de Barra pede ao ministro do STF Teori Zavascki a suspensão do processo tocado
pela 13ª Vara de Curitiba, alegando que Moro não tinha competência para julgar
o caso por haver indício de envolvimento de parlamentares, entre eles o então
senador Edison Lobão (MDB-MA).
Diante da
reclamação, Zavascki cobra explicações de Moro, que diz não saber nada sobre o
envolvimento de parlamentares. Mesmo assim, com base nas informações da defesa,
o ministro do STF suspende em 2 de outubro as investigações, o que força o
então juiz a remeter o caso de Curitiba para Brasília três dias depois. Seu
comportamento perante Zavascki foi impróprio, como evidencia um diálogo
registrado no Telegram dezoito dias depois entre o procurador Athayde Ribeiro
Costa e a delegada Erika Marena, da Polícia Federal. Costa diz precisar com
urgência de uma “planilha/agenda” apreendida com Barra que descreve pagamentos
a diversos políticos. Marena responde que, por orientação de “russo” (Moro),
não tinha tido pressa em “eprocar” a planilha (tradução: protocolar o documento
no sistema eletrônico da Justiça). “Acabei esquecendo de eprocar”, disse. “Vou
fazer isso logo”, completa.
Na pior das
hipóteses, Moro já sabia da existência da planilha quando foi inquirido por
Zavascki e mentiu ao ministro. Em um segundo possível cenário, igualmente
comprometedor, Moro teria tomado conhecimento da planilha depois da inquirição
de Zavascki e pediu à delegada para “não ter pressa” em protocolar o documento.
Tudo indica que a manobra tinha como objetivo manter o caso em Curitiba. “Um
juiz não pode ocultar provas, e, se o diálogo tiver a autenticidade comprovada,
estamos diante de uma conduta bastante problemática”, afirma o advogado Gustavo
Badaró, professor de processo penal da USP, que analisou a pedido de VEJA o
episódio. Na primeira leva de mensagens divulgadas pelo Intercept no mês
passado, Moro já aparecia reclamando de um delegado da PF que havia incluído
rápido demais todos os elementos da investigação no sistema eletrônico, o que
obrigaria o juiz a enviar parte do processo ao STF.
A relação entre
Moro e Dallagnol era tão próxima que abre espaço para que eles comemorem nas
conversas o sucesso de algumas etapas da Lava-Jato, como se fossem
companheiros de trabalho festejando metas alcançadas. Em 14 de dezembro de
2016, Dallagnol escreve ao parceiro para contar que a denúncia de Lula seria
protocolada em breve, enquanto a de Sérgio Cabral já seria registrada no dia
seguinte (o que de fato ocorreu). Moro responde com um emoticon de felicidade,
ao lado da frase: “ um bom dia afinal”. A proximidade rendeu ainda lances
curiosos. Em 9 de julho de 2015, Dallagnol saúda o colega: “bem vindo ao
telegram!!”. Cinco meses depois, dá dicas ao juiz de como usar o programa no
desktop, enviando no chat um link para o download. “Se puder me mandar no
e-mail, agradeço. O tico e o teco da informática aqui não são muito espertos”,
responde Moro. Em março de 2017, Dallagnol escreve ao juiz para tirar uma
dúvida: ele assina o primeiro nome com ou sem acento? O motivo é que o
procurador estava revisando um livro sobre Moro. “Não uso normalmente o
acento”, responde o juiz. Em julho de 2018, Dallagnol atua como assessor de
imprensa, perguntando a Eduardo El Hage, um colega do Ministério Público
Federal no Rio, detalhes de um pedido de participação de Moro em um programa do
canal fechado HBO: “Eles contataram o Moro aqui e ele queria ter o contexto e
informações que possam ser úteis pra ele decidir se atende”. Em um dos períodos
mais tensos da operação, o que se seguiu à ação do juiz que torna público o famoso
trecho do grampo telefônico em que Dilma Rousseff envia o “Bessias” para
entregar a Lula o termo de posse em seu ministério, Dallagnol combina em um dos
chats com procuradores uma nota de apoio a Moro e repassa ao grupo uma sugestão
do próprio juiz para o texto. Na mesma época, Moro também recebe um afago e
conselho de um interlocutor no Telegram (tudo indica, o procurador Carlos
Fernando dos Santos Lima). “O movimento seria nas sombras, como você mesmo
disse”, escreve, referindo-se ao convite de Dilma para Lula. “O seu capital
junto à população vai proteger durante um tempo. As coisas se transformam muito
rápido.”
As conversas
entre membros do Ministério Público Federal assumem várias vezes o tom de
arquibancada, com os membros da força-tarefa vibrando e torcendo a cada lance
da batalha contra os inimigos. Em 13 de julho de 2015, Dallagnol sai exultante
de um encontro com o ministro Edson Fachin e comenta com os colegas de MPF:
“Caros, conversei 45 m com o Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso”. A preocupação
da força-tarefa com a comunicação para a opinião pública era constante. Em 7 de
maio de 2016, Moro comenta com Dallagnol que havia sido procurado pelo
apresentador Fausto Silva. Segundo o relato do juiz, o apresentador o
cumprimentou pelo trabalho na Lava-Jato, mas deu um conselho: “Ele disse que
vcs nas entrevistas ou nas coletivas precisam usar uma linguagem mais simples.
Para todo mundo entender. Para o povão. Disse que transmitiria o recado.
Conselho de quem está a (sic) 28/anos na TV. Pensem nisso”. Procurado por VEJA,
Fausto Silva confirmou o encontro e o teor da conversa entre ele e Moro.
Curiosidades dos
bastidores à parte, o que vai definir mesmo o destino de Moro à luz das
revelações dos chats são os trechos nos quais fica evidente seu papel duplo de
juiz e assistente de acusação. A Lava-Jato foi assumidamente inspirada na Mani
Pulite, a Mãos Limpas da Itália, que desbaratou um gigantesco esquema de
corrupção na década de 90, resultando em 2 993 mandados de prisão nos dois
primeiros anos de operação. No caso do sistema de Justiça do país europeu há a
figura do magistrado que trabalha no Ministério Público — mas ele não atua nos
julgamentos. A melhor explicação para o comportamento irregular do atual
ministro é que ele tenha se inspirado nessa figura para pautar suas ações na
Lava-Jato. “O Moro confundiu totalmente os papéis”, afirma o jurista Wálter
Fanganiello Maierovitch. “O magistrado que investiga nunca é o que julga, nem
na Itália nem em nenhuma outra democracia do planeta.”
No Brasil, o
papel duplo do juiz viola o artigo 254 do Código de Processo Penal, que proíbe
que o magistrado aconselhe uma das partes ou tenha interesse em favor da
acusação ou da defesa. Essa atuação pode, de fato, provocar a revisão de atos
de Moro. No caso da condenação de Lula, por exemplo, o STF adiou a discussão
para agosto. Será uma decisão complexa e delicada para a Suprema Corte. Ali,
mesmo que alguns ministros já tenham criticado excessos da Lava-Jato, é difícil
qualquer prognóstico. Um dado, porém, é certo. Fiscalizar o que Moro fez
enquanto juiz não significa pôr em risco os avanços contra a corrupção no
Brasil, como sugerem as manifestações recentes nas ruas das cidades do país. A
sociedade brasileira não vai abrir mão do processo que resultou, pela primeira
vez na história, na prisão de políticos e empresários poderosos.
Embora as
conversas mostrem que Moro cometeu infrações, os crimes punidos ao longo da
Lava-Jato gozam de vasta coleção de provas materiais e orais. A maioria
esmagadora das sentenças, aliás, acabou confirmada em outras instâncias da
Justiça. Graças ao esforço dos procuradores de Curitiba, descobriu-se também o
Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, desenvolvido exclusivamente para
administrar o pagamento de propinas efetuado pela empresa no Brasil e no
exterior. O resultado prático e sua importância são incontestes. Diversos
políticos que se locupletaram nos últimos anos ainda estão presos. Entre eles,
Lula, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha… O próprio Lula, mesmo que a suspeição de
Moro seja confirmada, pode permanecer preso. Ele já foi condenado em primeira
instância pelo sítio em Atibaia, sentença proferida pela juíza Gabriela Hardt,
e o caso aguarda apenas a decisão do TRF4 (provavelmente favorável à sua
condenação). Portanto, não se trata aqui de uma defesa do Lula Livre nem de
estar contra a Lava-Jato. Mas, sim, do direito inexorável que todos os cidadãos
têm de um julgamento justo.
Na terça 2, Moro
(que, por sinal, não faz mais parte da Lava-Jato) ficou sete horas no Congresso
respondendo a parlamentares sobre o caso. Repetiu o que tem dito nas últimas
semanas: os diálogos divulgados foram fruto de um roubo, podem ter sido
editados e, mesmo verdadeiros, não apontam nenhum tipo de desvio. A cada nova
revelação, fica mais difícil sustentar esse discurso. Na sentença em que
condenou Lula, o ex-juiz anotou que “não importa quão alto você esteja, a lei
ainda está acima de você”. A frase cabe agora perfeitamente em sua situação
atual. Levado ao Ministério da Justiça para funcionar como uma espécie de
esteio moral da gestão Bolsonaro, ele ainda goza de grande popularidade, mas
hoje depende do apoio do presidente para se manter no cargo. Independentemente
do seu destino, o caso dos diálogos vazados representa uma oportunidade para que
o país discuta os excessos da Justiça e o fortalecimento dos direitos do
cidadão. Um país onde as instituições funcionam não precisa de nenhum
Super-Homem.
Nota da redação:
procurados por VEJA, Deltan Dallagnol e Sergio Moro não quiseram receber a reportagem.
Ambos gostariam que os arquivos fossem enviados a eles de forma virtual, mas,
alegando compromissos de agenda, recusaram-se a recebê-los pessoalmente, uma
condição estabelecida por VEJA. Mesmo sem saber o conteúdo das mensagens, a
assessoria do Ministério da Justiça enviou a seguinte nota: “A revista Veja se
recusou a enviar previamente as informações publicadas na reportagem, não sendo
possível manifestação a respeito do assunto tratado. Mesmo assim, cabe
ressaltar que o ministro da Justiça e Segurança Pública não reconhece a
autenticidade de supostas mensagens obtidas por meios criminosos, que podem ter
sido adulteradas total ou parcialmente e que configuram violação da privacidade
de agentes da lei com o objetivo de anular condenações criminais e impedir
novas investigações. Reitera-se que o ministro sempre pautou sua atuação pela
legalidade”.
Colaboraram
Leandro Demori, Victor Pougy, Nonato Viegas e Bruna de Lar
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