Ora, só pode ser porque a maior parte dos “camisas amarelas”
nunca esteve de fato interessada em combater a corrupção. O que, de resto,
apenas comprova a tese do falso moralismo do “combate à corrupção”, visto que
só vale para partidos populares, aponta o sociólogo e escritor Jessé Souza
Jessé Souza é
sociólogo, escritor e autor de "A elite do atraso"
4 de agosto de
2019
Por Jessé Souza,
na Rede Brasil Atual – O escândalo da “Vaza Jato”, provocado pelo The Intercept
e pela extraordinária coragem de Glenn Greenwald, desmascarou a hipocrisia do
jeito brasileiro de fazer política que já vem acontecendo há mais de cem anos.
A Lava Jato não é, afinal, uma história de cinco anos que começa em 2014 com o
“escândalo da Petrobras”, mas sim uma história que vem desde 1930, quando
Getúlio toma da “elite do atraso” o poder de Estado. Foi aí que se construiu a
ideia estapafúrdia de que a “corrupção só da política”, usando o conceito de
patrimonialismo como contrabando, é a raiz de todos os problemas brasileiros. A
construção dessa ideia ridícula como suposta explicação central para os
problemas brasileiros “coincide” com a ascensão de Vargas ao poder político
contra as elites do dinheiro. Como a elite do dinheiro tem que “moralizar” sua
rapina, desde então seus inimigos são perseguidos e sistematicamente depostos
do poder com falsas acusações de irregularidade pelo uso supostamente
“patrimonialista” e corrupto do Estado e da política.
Como nenhum fato
isolado se explica por si só, é necessário articular conscientemente a cadeia
entre as causas. Toda exploração econômica tem que se servir de um “álibi”, ou
seja, de um recurso simbólico que torne o fato da exploração invisível enquanto
tal, para poder ser exercida de modo que os próprios explorados a considerem
aceitável ou inevitável. O caso brasileiro é, no entanto, um caso limite.
Alguma forma de distorção da realidade está sempre presente em todos os casos
de sociabilidade humana conhecidos na história. No caso do nosso país, como o
escândalo da “Vaza Jato” mostra tão bem, a capa de moralidade não é mera
distorção da realidade vivida. Aqui, tal realidade é “invertida” e posta de
cabeça para baixo, o que explica o caráter patológico e neurótico para quem
vive a conjuntura política atual.
Afinal, a
descoberta irrefutável de uma quadrilha funcionando dentro do aparelho de
Estado, usando os cargos públicos não apenas para enriquecimento e vantagens
pessoais, mas também como uma forma despudorada de manipular a opinião pública
e minar todos os pressupostos da democracia com fins partidários, não levou –
ainda –sequer à perda dos cargos nem à prisão dos responsáveis. A lei parece
não se aplicar aos desmandos de Moro e sua quadrilha, muito menos para as
fontes de renda misteriosas da família Bolsonaro. Será que é porque esse
pessoal assegura, por outro lado, o saque do Estado e das riquezas nacionais
pela elite endinheirada? Quem ainda possuir dois neurônios intactos saberá
responder.
Mas, e como fica
a necessidade de se criar uma capa de moralidade e de falseamento da realidade
para legitimar os desmandos? A Lava Jato funcionou como articulação explícita
para a “corrupção real”, a da apropriação por agentes privados de empresas
públicas a preço de banana, o mesmo que, aliás, aconteceu recentemente com a BR
Distribuidora, pelos bancos que tiveram uma reunião secreta com Fux e Deltan.
Ao que parecia, a questão era que o PT não podia ser alçado ao poder para não
melar os “bons negócios”. Então, com uma corrupção tão descarada como essa,
como ninguém dos “camisas amarelas” vai às ruas para pedir que a honestidade
volte?
Ora, só pode ser
porque a maior parte dos “camisas amarelas” nunca esteve de fato interessada em
combater a corrupção. O que, de resto, apenas comprova a tese do falso
moralismo do “combate à corrupção”, visto que só vale para partidos populares.
A dificuldade geral, especialmente para a elite e a classe média, é a perda do
único “álibi” existente para mascarar seu ódio e desprezo pela população negra
e mais humilde sob a forma da falsa criminalização dos seus representantes. É a
compreensão intuitiva disso, o que explica também as idas e vindas de órgãos da
elite, como a Veja e a Rede Globo, na cobertura do caso. Eles precisam manter
um vínculo com a realidade, agora desmascarada, sob o risco de perder qualquer
legitimidade, até para a parte mais esclarecida do próprio público. Por outro
lado, estão envolvidos até o pescoço na manipulação desse mesmo público. O jogo
havia sido controlado de cima pela elite e sua imprensa venal. Moro e Deltan
foram apenas os “laranjas”, os pequenos oportunistas que ficam com as sobras do
negócio grande. Tudo indica que a parte mais esclarecida da classe média já
desceu do barco. Reinaldo Azevedo e outros arrependidos falam para esse
público.
É Bolsonaro e
sua base de poder infensa a argumentos racionais que permite a continuidade da
farsa. O seu público não precisa de legitimação porque seu protesto
radicalizado está vincado em sentimentos irracionais como ressentimento, inveja
social e preconceitos racial e de classe. Inveja e ressentimento contra os de
cima, o que explica os ataques à arte, à cultura e ao conhecimento em geral.
Também a vingança, há muito esperada, contra séculos de desprezo dos “doutores”
contra os remediados entre os pobres, a base real de Bolsonaro, muitos dos
quais são brancos e, por isso, se acham no direito “racial” de um futuro melhor
do que de fato possuem. Contra os de baixo, por sua vez, a raiva se volta para
os negros e mestiços pobres que tiveram a ousadia de ascender socialmente no
período recente e de chegar ainda mais perto deles. É difícil saber o que causa
mais revolta nestes 20% da população brasileira que são a base real da força de
Bolsonaro: a raiva contra os de cima ou contra os de baixo. Esse é seu público
cativo, os 20% que sempre apostaram nele mesmo antes da “fakeada”.
Para esse
pessoal, a democracia não é mais do que uma palavra odiada, afinal ela nunca
lhes serviu para nada. Ela só parece vantajosa para os já privilegiados e para
a população negra e humilde que ascendeu com o PT. Por causa disso, Bolsonaro
lhes parece o “vingador” perfeito. O discurso contra as elites, utilizado para
a arregimentação dos “bolsominions” para o último dia 26 de maio, mostra o
sequestro do tema da luta de classes pela direita, já que a esquerda foi
covarde e incapaz de qualquer protagonismo nessa área. Por outro lado, a única
política pública informal efetiva do bolsonarismo é armar milícias e polícias
para a chacina indiscriminada dos negros, índios e pobres, o que alimenta seu
desprezo e o de seu público pelos mais frágeis. Da mesma forma que a distância
em relação à “cultura” os inferioriza, a violência aberta contra os mais
frágeis os torna “aparentemente” poderosos. A destruição da cultura e do
conhecimento satisfaz sua inveja. A destruição dos fragilizados satisfaz seu
desprezo e seu medo deles. É tudo aparência para mentes doentias, mas a
aparência pode ser tudo para quem não tem mais nada.
Essa “minoria
barulhenta” pressente que o momento da vingança chegou. Ela se tornou
abertamente fascista porque é ela que diz: não importa se é ou não verdade o
que diz a “Vaza Jato”. O que importa é o que é “necessário” para se sentir
melhor do que se é. São pessoas em boa parte frustradas na vida privada, que
usam a política como forma de dar sentido a uma vida vazia e sem direção. O
“bolsominion” típico é um pobre remediado, na maioria um “lixo branco” sem
cultura e sem grandes esperanças na vida, que, de repente, pode se ver como
protagonista de alguma coisa. Ao se definir como conservador e de direita, se
sente como alguém que “protesta”, um pequeno herói, supostamente contra as
tendências de seu tempo, que ao se identificar com o tirano que “tira onda” de
poderoso, se sente igualmente poderoso. Como é incapaz de compreender uma
realidade complexa, refugia-se em bravatas estereotipadas e finge conhecer
muito do que nada conhece.
Para essas
pessoas, Moro é, hoje, tanto seu herói quanto Bolsonaro. Os “likes” de Moro
desceram a escala social, embora ele não tenha a menor ideia disso. Acredita-se
onipotente. Como sua valia para Bolsonaro era ser uma ponte com a classe média
estabelecida pseudomoralista, toda a sua base de apoio mudou ou está mudando.
Os 20% de supostos “empoderados” barulhentos é a única sustentação real do
atual arranjo de poder. Bolsonaro, por sua vez, também depende de Moro. Afinal,
a mentira da Lava Jato se alongou na própria mentira. Sem a Lava Jato não
existiria Bolsonaro. Os dois são carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue.
A solução não é simples para ninguém neste jogo. Ver a “casa cair” é o que o
“bolsominion” mais quer. Enquanto isso, a elite mais saqueadora quer a grana
fácil das grandes mamatas e sequer se dá conta do perigo. Bolsonaro
institucionaliza o roubo pequeno e miliciano do botijão de gás sem bandeira.
Esses são, hoje em dia, os apoios efetivos da Lava Jato. Os 80% restantes
observam bestializados um mundo que não mais compreendem.
0 comentários:
[ Deixe-nos seu Comentário ]
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor