"Quando 2019 for revisitado lá adiante, quando tudo isso
tiver passado, pois não há mal que sempre dure, haveremos de nos perguntar: como
pudemos tolerar tudo aquilo sem nos revoltar?", coloca a jornalista Tereza
Cruvinel. Ela diz ainda que a pesquisa Datafolha deste domingo "precisa
ser lida pelo reverso": "Se apenas 36% consideram o governo Bolsonaro
ruim ou péssimo, outros 62% não estão incomodados"
29 de dezembro
de 2019
Colunista do
247, Tereza Cruvinel é uma das mais respeitadas jornalistas políticas do País
Lá se vai
2019, o ano de Bolsonaro, ano trevoso, de mentiras e torpezas. Quando ele for
revisitado lá adiante, quando tudo isso tiver passado, pois não há mal que
sempre dure, haveremos de nos perguntar: como pudemos tolerar tudo aquilo sem
nos revoltar? Como pudemos nos silenciar diante do esbulho de direitos, das
mentiras diárias, da semeadura de preconceitos, dos ataques à cultura e ao
conhecimento, do empurrão constante do Brasil rumo à barbárie, do flerte com a
morte pelo incentivo à violência, até mesmo no momento natalino, com o indulto
a policiais assassinos e a celebração do aumento de armas em mãos de
brasileiros?
A pesquisa
Datafolha parcialmente divulgada neste domingo precisa ser lida pelo reverso,
valorizando a omissão, a cumplicidade monstruosa com tudo o que está aí. Se
apenas 36% consideram o governo Bolsonaro ruim ou péssimo, outros 62% não estão
incomodados, enxergam em tudo uma normalidade inaceitável, pois 30% o consideram ótimo ou bom e 32% regular. Se
acham regular, não estão vendo nada de anormal. Esta, a meu ver, é a pior
notícia para o ano que vem aí. Indica o quão longe estamos de construir na
sociedade uma maioria que diga não à brutalidade a que estamos submetidos. Com
62% aplaudindo ou cruzando os braços, eles - Bolsonaro, seus lacaios e a
extrema direita - vão continuar passando o trator sobre as universidades, os
direitos trabalhistas, a rede de proteção social, os direitos humanos, o meio
ambiente, a cultura e tudo mais. Não há dia em que mais de uma atrocidade não
seja anunciada.
É irrelevante
a comparação da rejeição a Bolsonaro com a reprovação ao Congresso (45%), que
está em desgraça junto à população há anos, especialmente depois da campanha de
demonização da política levada a cabo pela aliança mídia-Lava Jato. Ou com a do
Supremo (39%), um poder que nem tinha antes sua avaliação aferida pelo
instituto por conta de um protagonismo menor, que nos últimos anos cresceu.
É o Executivo
que tem o saco de maldades, o poder de arrasar com tudo, inclusive com as
instituições democráticas. O chefe do Executivo é que foi eleito por voto
majoritário. Por justiça, vale reconhecer que o Congresso, embora apoiando a
agenda econômica neo-liberal, conteve os ímpetos de Bolsonaro na guerra
cultural e na agenda comportamental, impedindo a aprovação de projetos como o
Escola sem Partido. E mesmo na agenda econômica, foi o Congresso que mitigou a
reforma previdenciária proposta por Paulo Guedes, evitando, por exemplo, a
elevação do tempo de contribuição mínimo das mulheres de 15 para 20 anos. Da
mesma forma, o Supremo tem imposto alguns limites, desautorizando, por exemplo,
o fim do DPVAT ou a extinção dos conselhos sociais por decreto, sem falar na
poda das asas da Lava Jato. Veremos agora se será capaz de condenar a MP que
fere de morte a autonomia universitária.
O que espanta,
ao final de um ano desatinado, é que 62% não percebam que estamos sendo
atacados de dentro, por um governo que fala em Deus para fazer o mal, submisso
à maior potência global, interessada em nos recolonizar como quintal. Guardadas
as proporções, a situação permite um paralelo com a indiferença do povo alemão
diante da ascensão de Hitler e do avanço do nazismo. Ainda em 1930, diante do
segundo lugar nas urnas obtido pelo Partido Nacional-Socialista de Hitler, o
escritor Thomas Mann fez o primeiro de seus muitos alertas, numa célebre conferência
intitulada Um Apelo à Razão. Hitler já não podia ser considerado apenas uma
piada de mau gosto, disse ele. Mann já havia ganhado o prêmio Nobel de
Literatura e tinha enorme prestígio em seu pais, mas falou em vão. Deportado
com sua família em 1936, continuou escrevendo cartas ao povo alemão. Não temos
um Mann, mas temos Lula, que em janeiro retomará suas caravanas. Conseguirá ele
sacudir povo brasileiro, romper esta prostração letárgica?
Em 2013,
quando a Alemanha recordou em penitência os 80 anos da ascensão de Hitler, a
chanceler Angela Merkel disse algo que serve perfeitamente ao Brasil de 2019: “
Aquilo só foi possível devido à cumplicidade e indiferença das elites e de boa
parte do povo alemão”. Relativamente às nossas elites, pesquisa recente também
apurou que 60% dos empresários apoiam irrestritamente o governo Bolsonaro. Sim,
a economia não vai bem mas eles estão ganhando com a retirada de obrigações
trabalhistas, e agora até da fiscalização. A mais-valia cresce. O fim do
Ministério do Trabalho, criado por Vargas na aurora do trabalhismo, é símbolo
mais que perfeito da aliança governo bruto-capital selvagem.
Se alguém tem
ilusões quanto a 2020, que olhe os números do orçamento: a fiscalização
trabalhista perderá metade de seus recursos, assim como o Minha Casa, Minha
Vida. O Pronatec perderá 97%, vale dizer, vai acabar. A verba do Bolsa-Família
encolheu e a Farmácia Popular também pode desaparecer. São os pobres sendo
retirados do orçamento.
Não podemos
esquecer as mentiras de um presidente que a mídia hesita em chamar de mentiroso
com todas as letras. Bolsonaro, ainda antes da posse, desqualificou os médicos cubanos,
que andam fazendo tanta falta, dizendo que alguns nem médicos eram. Teve a cara
de pau de dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Que os radares nas
estradas, longe de prevenir acidentes, produziam aumento. Que as ONGS é que
tocaram fogo na Amazônia. Que não há fome no Brasil e que nossas universidades
não produzem pesquisas. Que o ator Leonardo di Caprio financiou ações contra a
Amazônia para culpar seu governo. Foi capaz de anunciar a possibilidade de ter
câncer de pele para depois acusar a imprensa de ter produzido fake-news sobre o
assunto. O arsenal é grande e cansativo.
As torpezas
não podem ser esquecidas. Chamou a mulher do presidente francês de feia, louvou
a morte do pai de Michele Bachelet pela ditadura Pinochet e insinuou que o pai
do presidente da OAB não foi morto nos porões, pela tigrada do regime militar,
mas por companheiros da própria esquerda. Em compensação, disse I love you para
Donald Trump.
Não falemos na
política externa, a mais desastrada que o Brasil já teve desde a independência.
Por tudo isso,
pelos 62% que estão achando tudo normal, é muito difícil, nestas horas finais
de dezembro, dizer um sincero “Feliz Ano Novo”.
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