"Nosso Hitler não é propriamente Bolsonaro, mas o Guedes.
Evidentemente, não o Guedes pessoa física, mas a sua agenda selvagem, grotesca
e anticivilizatória, a qual promete criar uma sociedade baseada na desigualdade
extrema, na miséria, na exclusão de dezenas de milhões de cidadãos e no cada um
por si", afirma o colunista Marcelo Zero
19 de janeiro
de 2020
Marcelo Zero é
sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do
PT no Senado
XXX
A demissão
sumária do explicitamente nazista Alvim, nulidade intelectual plagiadora de
Goebbels, pode ter dado a impressão de que o governo Bolsonaro não compartilha
do ideário nazifascista.
Engano crasso.
O inacreditável ex-secretário de cultura não diverge do bestiário fascista que
é o governo do capitão. Ele foi colocado à frente da pasta da cultura
justamente para cumprir com a agenda nazistoide de promover uma suposta
“cultura nacional” pura e reprimir quaisquer manifestações culturais
divergentes. Ele citou Goebbels porque a agenda cultural do capitão é a mesma
do ministro nazista da propaganda.
O governo
Bolsonaro teve de demitir Alvim apenas porque esse não soube manter as
aparências. Com isso, provocou escândalo nacional e a pronta reação de Israel,
um dos poucos governos do mundo que é aliado do infame governo do capitão.
A agenda
cultural nazistoide, porém, prosseguirá, provavelmente sob a gestão temerária
de destemida atriz.
Da mesma
forma, prosseguirão todas as ouras agendas autoritárias do governo do capitão,
especialmente na área econômica.
Entretanto, o
chamado “centro” político do Brasil, ou a velha direita, agora faz de conta que
não tem nada a ver com a barbárie política que tomou conta do país.
Compreende-se. O bestiário bolsonarista é constrangedor para quem tem um mínimo
de pudor.
Mas não pode
fazê-lo.
Em primeiro
lugar, porque foram eles, partidos políticos tradicionais, mídia corporativa,
sistema financeiro, agronegócio, patronato industrial etc. que colocaram
Bolsonaro no poder. Estimularam, cevaram e apoiaram o bolsonarismo, o
antipetismo e o antiesquerdismo, da mesma forma que a direita tradicional alemã
acabou fazendo com Hitler. O intuito maior era evitar que o PT e seus aliados
voltassem ao poder e, dessa maneira, impor a agenda das reformas
ultraneoliberais.
Não adianta
agora, que a caixa de Pandora foi aberta, vir reconhecer tardiamente que
Bolsonaro é nazista, como faz o Estadão. O Estadão e todos os outros apoiadores
sabiam muito bem, há bastante tempo, que Bolsonaro era um fascista declarado.
Em segundo
lugar, porque o bolsonarismo é o regime político apropriado para a imposição da
agenda ultraneoliberal, que eles tanto apoiam. Um não pode ser dissociado da
outra.
Bertold Brecht
tem um pequeno texto, datado de 1935, que me parece esclarecedor sobre as
relações entre nazifascismo e capitalismo. Intitula-se “O Fascismo é a
verdadeira face do Capitalismo”. Nele, Brecht critica a visão ingênua de que o
nazifascismo podia ser dissociado do estágio do capitalismo naquele tempo e
naquelas circunstâncias.
Escreveu ele:
De acordo com
essa visão, o fascismo é um terceiro poder novo ao lado (e acima) do
capitalismo e do socialismo; não apenas o movimento socialista, mas também o
capitalismo teriam sobrevivido sem a intervenção do fascismo. E assim por
diante. Esta é, obviamente, uma reivindicação fascista; aderir a isso é uma
capitulação ao fascismo.
O fascismo é
uma fase histórica do capitalismo; neste sentido, é algo novo e ao mesmo tempo
antigo. Nos países fascistas, o capitalismo continua a existir, mas apenas na
forma de fascismo; e o fascismo apenas pode ser combatido como capitalismo,
como a forma de capitalismo mais nua, sem vergonha, mais opressiva e mais
traiçoeira.
Aqueles que
são contra o fascismo sem serem contra o capitalismo, que lamentam a barbárie
que sai da barbárie, são como pessoas que desejam comer carne de vitela sem
matar o bezerro. Eles estão dispostos a comer o bezerro, mas não gostam da
visão de sangue. Eles ficam satisfeitos com facilidade se o açougueiro lavar as
mãos antes de pesar a carne. Eles não são contra as relações de propriedade que
geram a barbárie; eles são apenas contra a própria barbárie.
Claro está que
o capitalismo também pode florescer em outros regimes políticos, inclusive os
democráticos. Não obstante, naquelas circunstâncias históricas específicas, de
ampla crise econômica, social e política e de avanço dos movimentos dos
trabalhadores, os regimes nazifascistas se constituíram nas formas ideais,
talvez as necessárias, naqueles países, para assegurar a continuidade da
acumulação capitalista.
Algo
semelhante aconteceu no Brasil.
Ante a
profunda crise, o medo da volta do “lulismo” e o desejo imperioso de fazer
vingar a “pinguela para o passado”, escolheu-se o bolsonarismo, que impõe a
agenda ultraneoliberal e, ao mesmo tempo, se encarrega de reprimir quaisquer
movimentos para combatê-la. O bolsonarismo tem (ou tinha) a “virtude” de manter
as esquerdas e os movimentos populares na defensiva, cooptando vastos setores
das camadas populares para o campo da direita, pela sua linha ideológica,
religiosa e comportamental.
O “centro
político” do Brasil, na realidade um bolsonarismo envergonhado, é extremamente
hipócrita. Constrange-se com as menores barbáries ideológicas, culturais,
políticas e gramaticais de gente como Alvim, Weintraub, Damares e o próprio
Bolsonaro, mas não sente o menor pudor em apoiar entusiasticamente a grande
barbárie de atirar dezenas de milhões de brasileiros no lodaçal hediondo da
miséria, da desigualdade, da desesperança e do abandono do Estado mínimo. Não
vê o menor problema em eliminar direitos trabalhistas e previdenciários ou em
restringir os serviços públicos dos quais os pobres mais dependem. Não sente pejo
também em vender o Brasil, em retornar o país à condição de colônia e em
torná-lo pequeno e submisso. Vale tudo, desde que não se atropele o vernáculo e
as aparências sejam mantidas.
Voltando à
metáfora de Brecht, se lambuzam com a vitela das taxas de lucros aumentadas,
mas não querem saber do bezerro sacrificado, inclusive do bezerro da
democracia, imolado pelo golpe, a lawfare e o crescente regime de exceção.
Contudo, como
assinalava Brecht, uma coisa não pode ser dissociada da outra. O bolsonarismo existe
para pavimentar a implantação de um ultraneoliberalismo pinochetista. As
constrangedoras barbáries do bolsonarismo existem para permitir a grande
selvageria ultraneoliberal. Bolsonaro et caterva existem para propiciar um bom
trabalho para Guedes.
Assim, nosso
Hitler não é propriamente Bolsonaro, como diz o Estadão, mas o Guedes que eles
apoiam. Evidentemente, não o Guedes pessoa física, mas a sua agenda selvagem,
grotesca e anticivilizatória, a qual promete criar uma sociedade baseada na
desigualdade extrema, na miséria, na exclusão de dezenas de milhões de cidadãos
e no cada um por si. Uma sociedade de “empreendedores” individuais, desde o
grande banqueiro até o entregador de Uber Eats. Um grande e falido Chile.
Bolsonaro, por
mais constrangedor que seja, não passa do retrato de Dorian Grey das nossas
oligarquias, as quais nunca sentiram vergonha em submeter a população ao que
Gandhi chamava de “a pior forma de violência”: a miséria. Ele é a feiura que as
nossas elites horrendas tentam esconder.
Por
conseguinte, como diria Brecht, não dá para combater o bolsonarismo sem se
lutar contra o ultraneoliberalismo. Não dá para se eliminar a barbárie sem se
lutar contra a causa última da barbárie.
Não há
ultraneoliberalismo pulcro, democrático e civilizado. O que é há é muita
hipocrisia.
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