"Quarenta anos depois de encarnar uma personagem importante
para emancipação feminina, Regina Duarte é convidada para o papel de modelo
publicitário do bolsonarismo", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas
pela Democracia
20 de janeiro
de 2020
Paulo Moreira
Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi
correspondente na França e nos EUA
X-X-X
Por Paulo
Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia - Uma das mais populares atrizes
da história da TV brasileira, Regina Duarte levou anos para deixar a condição
de talento valorizado mas descartável de nossos folhetins eletrônicos. Em
1979/1980, rompendo com a condição de rosto bonito, ela fez o seriado Malu
Mulher, encarnando a primeira personagem
feminina da TV capaz de assumir abertamente sua liberdade sexual.
Num país onde
a Globo era campeã da audiência, referência ideológica e de comportamento para
milhões de brasileiros e brasileiras, Regina Duarte sinalizou uma travessia
fundamental da emancipação feminina -- o direito ao orgasmo, assumido de forma
explícita ao longo do seriado.
Numa história
que os contemporâneos dificilmente esquecerão, em cenas escritas com
sensibilidade por Glória Perez e dirigidas com delicadeza por Daniel Filho,
atriz e personagem se uniram para ensinar que as mulheres tinham direito à
própria felicidade, inclusive fora do casamento -- verdade crucial num país que
apenas três anos antes havia aprovado o
divórcio.
Quatro décadas
depois, a caminho da Secretaria da Cultura do governo Jair Bolsonaro, Regina
Duarte ameaça completar um percurso regressivo iniciado há vários anos. Cumpriu
uma trajetória por todos conhecida. Abandonou as diversas causas progressistas
e democráticas que assumiu ao longo da carreira, até chegar a 2018 como cabo
eleitoral do bolsonarismo.
Num governo
empenhado em retirar direitos e liberdades das
mulheres, que cultiva uma visão obsessiva e perversa da liberdade sexual
-- a ponto de estimular uma campanha a favor do sexo só depois do casamento --
o percurso inevitável de Regina Duarte é de retrocesso e submissão.
Seu destino
será desdizer o que disse, desfazer o que fez, numa sequência que lhe permitiu
tornar-se admirada por brasileiros e
brasileiras, gerando uma duradoura empatia popular que, no terrível Brasil de
2020, Bolsonaro pretende alugar para servir a um um governo em estado de colapso
moral.
Não por acaso,
o cidadão que ocupava a cadeira que Jair Bolsonaro reservou para Regina Duarte
era um admirador de Goebbels. Queria formatar a cultura brasileira na modelagem
do nazismo, onde o lugar da mulher é ser boa mãe, criar os filhos e, acima de
tudo, obedecer ao marido.
Os bons
observadores da história humana ensinam que é possível medir o grau de
civilização de uma sociedade pelo tratamento que dispensa às mulheres.
Pai de quatro
filhos, o presidente jamais perdeu uma chance de mostrar desprezo pelos avanços
da emancipação feminina. Já foi capaz de referir-se a única filha como fruto de
uma "fraquejada". Também disse à deputada Maria do Rosário que ela
era "muito feia para ser estuprada". A lista é maior mas podemos
ficar por aqui.
Atriz
experiente, Regina Duarte sabe que até podem ocorrer mudanças de nomes e
alterações do cenário, mas o enredo do espetáculo permanece em linha com o
espírito macabro do antecessor -- até porque, minutos antes do escândalo
produzido pela encarnação Goebbels, o dono da festa disse que enfim havia
encontrado um "secretário de cultura de verdade".
Esse traço
definidor inclui um empenho geral de
ataque às liberdades, um vale tudo selvagem, sem distinção de credo, origem ou
gênero. O que se quer é uma cultura postiça, do Estado, a serviço da propaganda
política.
Um
levantamento do Artigo 5o, movimento que reúne intelectuais e artistas
mobilizados em defesa da liberdade de expressão, indica 115 casos de censura,
ameaças e atos de intimidação ocorridos no país desde a posse de Bolsonaro --
sejam decisões que partiram de diversas instâncias do Estado, de entidades
particulares ou mesmo intervenções de bandos truculentos contra eventos
públicos.
Mesmo
admitindo que as pessoas mudam de ponto de vista e mesmo de ideologia ao longo
da existência, num mundo onde não faltam decepções e sobram oportunidades para
tropeços, não há muito para Regina Duarte fazer neste ambiente.
Pela formação,
pela experiência e, acima de tudo, pela realidade do universo político, na melhor
das hipóteses seu lugar será decorativo como uma modelo de publicidade: dona da
imagem mas não do próprio texto.
A menos,
claro, que, como um Mefisto de saias, esteja resolvida a oferecer sua alma ao
demônio, como descreve Klaus Mann no grande romance de 1936, obra indispensável
para se compreender a corrupção moral produzida pelo nazismo nos meios
artísticos da Alemanha de Hitler e Goebbels.
Alguma dúvida?
0 comentários:
[ Deixe-nos seu Comentário ]
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor