Se, em vez de namorar o criacionismo e o “terra-planismo” – uma
quase caricatura –, os que nos governam acreditassem mais na ciência, na
diversidade e na liberdade, estaríamos mais seguros de que nossas inquietações,
com o tempo, encontrarão solução, diz ele
2 de fevereiro
de 2020
Em artigo
publicado neste domingo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que ajudou
a articular o golpe de estado contra a ex-presidente Dilma Rousseff em 2016,
critica o terraplanismo dos bolsonaristas que hoje desgovernam o Brasil.
Curiosamente, neste domingo, a Folha de S. Paulo, que apoiou o golpe articulado
por FHC, diz que Lula mente ou distorce a realidade por também criticar o
terraplanismo dos olavistas. Confira, abaixo, a entrevista de FHC:
Angústias e
crença
Por Fernando
Henrique Cardoso
Fim e começo
de ano são épocas de balanço pessoal, familiar, das empresas e mesmo do País.
Sem maiores pretensões, direi umas poucas palavras sobre o mais geral: o que me
preocupa ao ver o Brasil como nação.
Primeiro, a
maior angústia coletiva: levantar o gigante de seu berço. Tarefa que vem sendo
feita ao longo de gerações. É inegável que houve avanços, alguns consideráveis.
Bem ou mal, de uma sociedade agrário-exportadora, que usava escravos como mão
de obra, o País passou a dispor de uma economia urbano-industrial, baseada no
trabalho livre. Para isso não só as migrações internas, como a imigração foram
fundamentais. Com elas se acentuou nossa diversidade cultural.
Hoje somos uma
nação plural, na qual a contribuição inicial dos portugueses se robusteceu
muito, não apenas por havermos conseguido passar da escravidão para o trabalho
livre, mas também por termos incorporado os negros à nossa sociedade (embora
ainda de forma parcial) e em nossa cultura. Incorporamos também um
significativo conjunto de pessoas vindas da Europa latina e de outros segmentos
populacionais do continente europeu, além de árabes e asiáticos, sobretudo
japoneses. E desde o início da colonização houve miscigenação com as populações
autóctones.
Dado o
mosaico, será que conseguimos de verdade criar uma nação consciente de seu
destino comum e acreditar que ele seja bom? Esse é o desafio que explica parte
de nossas incertezas. Hoje somos muitos, mais de 210 milhões de pessoas habitam
o Brasil. Nossa força, como também nossas dificuldades se ligam ao tamanho
dessa população: somos muitos, diferentes e desiguais. Não me refiro à
desigualdade provinda da diversidade, que nos enriquece, mas da que mantém na
pobreza boa parte dos nossos conterrâneos. Esta é outra fonte de nossas
angústias: como envolver num destino comum, de prosperidade e bem-estar, tanta
gente social, cultural e economicamente desigual? Se há algo a admirar nos Estados
Unidos é que, como nação, e apesar de existirem as mesmas, e até maiores,
diversidades e confrontos entre seus habitantes, eles conseguiram criar e
transmitir o sentimento de que “estão juntos”. A crença nos valores da pessoa
humana, da democracia e da liberdade, que a Constituição americana expressa,
serviu de cimento para que os Estados Unidos avançassem.
Precisamos de
algo semelhante. Um dos caminhos é o da educação. Enquanto tive poder de
decisão, pendi para ampliar a inclusão dos jovens na pré-escola e no ensino
fundamental. Não porque descreia da importância do ensino secundário e do
superior (nem poderia, dada minha vivência como professor), mas porque nos dias
de hoje quem é bom de verdade avança, mesmo que sozinho, e se torna “global”.
Porém o que conta para a formação nacional é a média, e não a ponta de
excelência. E a média não avança se a base da pirâmide não for ampla e sólida.
Até que ponto
se conseguiu avançar?
Em certos
setores, bastante: nos segmentos produtivos nos quais fomos capazes de
introduzir ciência e tecnologia. Assim aconteceu especialmente na agricultura,
que desde o passado se apoiou na tecnologia. O Instituto Agronômico de Campinas
exemplifica bem o que ocorreu com a produção cafeeira. Por trás de cada produto
em que a agricultura avançou sempre houve o apoio de alguma instituição de
fomento e pesquisa.
Mesmo na
indústria houve esforços consistentes no desenvolvimento de uma indústria de
base moderna (aço, petroquímica) e na produção de bens de transporte tão
sofisticados quanto aviões. A indústria extrativista, que era pouco eficiente,
se agigantou (basta ver o que aconteceu com o petróleo). E tudo isso requereu
melhorias na infraestrutura.
No mundo
contemporâneo, a tradução de ciência em tecnologia se acelerou. E o Brasil tem
mostrado dificuldade de acompanhar essa aceleração, o que tende a aumentar a
distância entre nós e os países mais avançados, limitando as nossas
possibilidades de desenvolvimento.
É essa a
grande preocupação quanto a nosso futuro. Pouco se fez em algumas das áreas que
mais avançam na era contemporânea: robótica, inteligência artificial, machine
learning, todo um conjunto de tecnologias características da chamada indústria
4.0.
É pena ver o
governo atual mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar no largo
prazo o nosso destino como nação. Se, em vez de namorar o criacionismo e o
“terra-planismo” – uma quase caricatura –, os que nos governam acreditassem
mais na ciência, na diversidade e na liberdade; se, em vez de guerrear contra
fantasmas (como o “globalismo” ou a penetração “gigantesca” do “marxismo
cultural”), os que se ocupam da educação, da ciência e da tecnologia no Brasil
voltassem sua vista para observar como se dá a competição entre as grandes
potências e dedicassem mais atenção à base científico-tecnológica requerida
para desenvolvimento de um país moderno, democrático e que preza a liberdade,
estaríamos mais seguros de que nossas inquietações, com o tempo, encontrarão
solução.
Espero que
encontrem, pois os governos passam e as nações permanecem.
SOCIÓLOGO, FOI
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
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