São Clemente pode até não vencer, mas com Adnet fez o desfile
mais bem humorado e crítico na medida certa
Por Joaquim de
Carvalho | 25/02/2020
A São Clemente
pode não levar o título de campeã — o que não seria surpreendente, já que a
escola, de 58 anos, nunca venceu no Grupo Especial.
Mas fez nesta
noite um desfile que será lembrado como um dos mais criativos deste carnaval,
em grande parte devido à genialidade do humorista Marcelo Adnet.
Ele é um dos
autores do samba-enredo (letra abaixo) e foi o destaque de um carro alegórico,
como o presidente Jair Bolsonaro.
Fez arminha
com a mão e enganou nas flexões de braço, que mais parecem flexões de cabeça.
Certamente,
Adnet influiu em todo o enredo e na montagem do elenco, já que colegas dele na
Escolinha do Professor Raimundo interpretaram personagens que contam um pouco
da história recente.
Mateus Solano
foi o “laranja”, Érico Brás interpretou um corretor que vende terrenos na Lua,
e Marcos Veras foi um fazendeiro que caiu no golpe. Paulo Vieira representou um
político cheio de regalias na cadeia.
Outro amigo de
Adnet, Welder Rodrigues, interpretou o pastor que explora as ovelhas e carrega
uma Bíblica que tem um cifrão na capa.
A bateria veio
fantasiada de laranja, com uma rainha, Raphaela Gomes, vestida de polícia
federal. Era uma ironia ao inquérito sobre o ministro Marcelo Álvaro Antônio,
indiciado por crime de estelionato eleitoral, mas firme no governo.
Os versos do
samba diziam: ”Tem laranja! Na minha mão, uma é três e três é dez!”. Erro
matemático proposital. Era a fraude do PSL, o partido pelo qual Bolsonaro se
elegeu.
O Brasil caiu
no Conto do Vigário, o tema da escola.
“Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu! E o País inteiro assim
sambou, ‘caiu na fake news!’”, cantavam os passistas.
A São
Clemente, escola que nasceu em Botafogo, Zona Sul da cidade, já foi chamada de
PT do Samba, pelos enredos panfletários da década de 80.
Tem a cara da
classe média descolada carioca, não dos morros — afinal, todos têm o direito de
brincar.
O desfile de
hoje não foi panfletário, mas foi crítico, na dimensão do humor. Foi uma
Escolinha do Professor Raimundo melhorada, uma Zorra Total sem as piadas sem
graça.
O público
gostou e a rede social ficou agitada com a criatividade da escola. No fundo,
foi uma forma de dizer a Bolsonaro VTNC, sem precisar falar palavrão.
Mas o recado
foi bem entendido. Parte do Brasil caiu no Conto do Vigário.
Segue a letra
do samba-enredo da São Clemente, de autoria de André Carvalho, Camilo Jorge,
Gabriel Machado, Gustavo Albuquerque, Luiz Carlos França, Marcelo Adnet, Pedro
Machado e Raphael Candela:
Meu povo chegou, ô, ô
A maré vai virar, laiá
Na ginga, pra frente
Lá vem São Clemente
Sem medo de acreditar
O sino toca na capela e anuncia
Nossa Senhora, começou a
confusão
Quem vai ficar com a imagem de
Maria?
O burro vai tomar a decisão
Mas o jogo estava armado
Era o conto do vigário
Nessa terra fértil de enredo
Se aprende desde cedo
Todo papo que se planta, dá
Dom João deu uma volta em
Napoleão
Fez da colônia dos malandros,
capital
Trambique, patrimônio nacional
Tem laranja
Na minha mão, uma é três e três
é dez
É o bilhete premiado, vendido
na rua
Malandro passando terreno na
Lua
Hoje, o vigário de gravata
Abençoa a mamata
Lobo em pele de cordeiro
Trago em três dias seu amor
La garantia soy yo
Só trabalho com dinheiro
Chamou o VAR, tá grampeado
Vazou, deu sururu
Tem marajá puxando férias em
Bangu
Balança na rede
Abre a janela, aperta o coração
O filtro é fantasia da beleza
Na virtual roleta da desilusão
Brasil, compartilhou,
viralizou, nem viu
E o país inteiro assim sambou
Caiu na fake news
.x.x.x.x.
Veja o desfile. O da São
Clemente está logo no início:
.x.x.x.
PS: Ao escrever este texto,
ainda faltava o desfile de cinco escolas, mas é difícil que, em humor, outra
supere a São Clemente.
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