
"Que sociedade viramos nesse caminhar suicida que
inauguramos na pandemia? Porque será que as pessoas tem essa ânsia de voltar ao
normal? Porque o normal ilude, dá a sensação de que somos vencedores",
escreve Miguel Paiva
14 de junho de
2020
Cartunista,
ilustrador, diretor de arte, roteirista e criador da Radical Chic e Gatão de
Meia Idade
X-X-X
O que se
constata nesses tempos é que somos uma sociedade de consumo. Pobre, mas de
consumo. Consumo pobre, talvez, ou somente uma sociedade com a ideia de que
liberdade é poder consumir. Essas filas de pessoas aflitas para entrarem nos
shoppings depois da flexibilização ( nome sofisticado para condenação ) retrata
bem isso.
Fico aqui
pensando nesses tempos de liberdade total de pensamento, o que querem elas
fazer nos shoppings abertos? Já que não têm tanto dinheiro assim, talvez
queiram ter a ilusão de que o mal passou. Tudo voltou ao normal. Posso circular
novamente. Ou talvez experimentar a sensação, também ilusória, de que podem
gastar novamente. Gastar virou símbolo de liberdade. Enquanto não me proibirem
de consumir sou uma pessoa livre. Não importa se tenho dinheiro ou não. Gasto
aquilo que tenho e o resto que se dane. Posso até me contaminar nesse impulso
louco de liberação, mas vou me contaminar exercendo esse direito.
É um pouco o
que prega Bolsonaro e seus asseclas confundindo a cabeça das pessoas sobre o
que é liberdade. Existem certas conquistas da democracia que não podem ser
derrubadas. Faz parte da constituição. Inclusive respeitar a constituição faz
parte da constituição. Mas eles acham que liberdade de expressão é poder pregar
a queda da constituição. Não pode. Isso ameaça a democracia do mesmo jeito que
qualquer manifestação nazista no mundo é proibido porque justamente o nazismo
vai contra a livre manifestação. Basta ler um livro de história inclusive
aqueles fascículos da Editora Abril que eram vendidos em banca.
Mas voltando à
nossa sociedade e a sua livre manifestação do desejo de consumir constatamos um
erro na origem. Essa sociedade neoliberal forma pessoas que não são capazes de
viver de modo mais digno. Ela forma pessoas que sonham em ser aquilo que jamais
serão. A própria sociedade neoliberal se estrutura nessa pirâmide em que os
mais pobres sustentam os mais ricos. Os mais pobres, segundo os mais ricos,
devem voltar logo ao trabalho, aos shoppings e ao consumo. Podem até morrer,
mas nós os mais ricos precisamos desse
mecanismo para sermos cada dia mais ricos. Nos protegemos melhor do vírus,
temos mais dinheiro e mais leitos hospitalares por isso podemos manter o
trabalho pra que vocês nos sustentem e possam circular nos shoppings populares
e nos transportes públicos, se sentindo de novo vivos até o momento em que vão
morrer. Desse jeito, muita gente vai morrer, mas que diferença faz para os que
tem mais dinheiro? Nenhuma, ou melhor, toda a diferença. Menos gente, a divisão
fica melhor, sobra mais dinheiro.
Que sociedade
viramos nesse caminhar suicida que inauguramos na pandemia? Porque será que as
pessoas tem essa ânsia de voltar ao normal? Porque o normal ilude, dá a
sensação de que somos vencedores. Conseguimos vencer a pandemia e vamos
conseguir vencer as dificuldades da vida? Voltar a circular nos shoppings ou
nas praias passa essa ilusão. Queremos viver, claro. É justo. Mas queremos
viver a vida real, onde ao trabalho é um direito e a qualidade de vida uma
conquista. Fingir que estou bem não resolve. Precisamos de mais tempo. De mais
governo que saiba não só dar o exemplo como as condições para que essa
sociedade possa esperar em casa.
Um estado mais
forte é fundamental mas um estado forte não é o que anda armado pelas ruas. É o
que dá conforto e segurança ao cidadão para quando o dia chegar poder realmente
sair as ruas para ser feliz e não se enganar comprando uma camiseta falsa por
um preço exorbitante para dar de presente e assim ter a sensação de voltou a
viver. Isso é morrer sendo enganado. Mas não se deixem enganar.
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