"A morte de dona Marisa Letícia é a síntese dolorosa da
força do ódio inoculado nas veias do Brasil nos últimos anos contra o PT,
contra ela, Lula e a família, contra tudo o que representaram desde 2003. Sua
ausência na vida do ex-presidente terá consequências pessoais e políticas, mas
haverá tempo para falar de Lula sem Marisa", escreve Tereza Cruvinel, em
um texto em homenagem à ex-primeira-dama; Tereza atribui a expansão do
aneurisma de Dona Marisa, que era inofensivo há dez anos, ao "martelar
constante das injúrias, implicâncias, achincalhes, preconceitos e, finalmente,
da perseguição implacável contra os Lula da Silva, indiciados e denunciados sem
provas para evitar banir o ex-presidente da política"; "Não é preciso
dizer agora o nome de ninguém. Os mais insanos podem ter celebrado, mas alguns
não devem ter dormido em paz esta noite", diz a colunista
Por: Tereza Cruvinel
Colunista do 247, Tereza
Cruvinel é uma das mais respeitadas jornalistas políticas do País
03/02/2017
A morte de
dona Marisa Letícia é a síntese dolorosa da força do ódio inoculado nas veias
do Brasil nos últimos anos contra o PT, contra ela, Lula e a família, contra
tudo o que representaram desde 2003. Sua ausência na vida do ex-presidente terá
consequências pessoais e políticas, mas haverá tempo para falar de Lula sem
Marisa. A hora é de recordar uma mulher do povo, uma brasileira de fibra que
silenciosamente ajudou a escrever páginas importantes da história
contemporânea. Neste tempo, o aneurisma que era inofensivo há dez anos foi se
expandindo sob o martelar constante das injúrias, implicâncias, achincalhes,
preconceitos e, finalmente, da perseguição implacável contra os Lula da Silva,
indiciados e denunciados sem provas para evitar banir o ex-presidente da
política. No limite do insuportável, o corpo foi vencido, o aneurisma
rompeu-se. Não é preciso dizer agora o nome de ninguém. Os mais insanos podem
ter celebrado, mas alguns não devem ter dormido em paz esta noite. O Brasil
anda enlouquecido, mas ainda não perdeu a razão que lhe permitirá tirar
conclusões. A hora é recordar Marisa, uma brasileira, que na morte homenageará
a vida com a doação de seus órgãos.
A filha de
João Casa e dona Regina Rocco Casa, ambos de ascendência italiana, cresceu no
pequeno sítio da família em São Bernardo do Campo, vendo o pai cultivava
frutas, legumes e verduras para vender no mercado e sustentar a família. Deixou
a escola no que hoje seria a sétima série para trabalhar como babá. Depois
virou operária numa fábrica de chocolates e dali saiu para trabalhar na
prefeitura. Em 1970, deixou de trabalhar quando se casou com o motorista de
caminhão Marcos Claudio dos Santos. O casamento só durou seis meses. Numa noite
em que dirigia o táxi do pai, ele foi assassinado. Marisa ficou viúva grávida
de Marcos, criado como filho por Lula.
Quem conviveu
com o ex-presidente já o ouviu contar mais de uma vez a história de como
conheceu Marisa. Ele era diretor do sindicato quando recebeu a “loirinha
bonita” de que já ouvira falar. Ela havia ido lá outras vezes em busca de
documentos que lhe ajudariam a receber algum direito do falecido marido. Lula
esticou a conversa, contou que era viúvo também. Sua primeira mulher, Maria de
Lourdes, morrera num parto, com a criança, em 1971. Namoraram e se casaram em
1974. Vieram os filhos Fábio, Sandro e Luiz Cláudio.
Era tempo de
ditadura e arrocho salarial. A militância sindical de Lula se intensificou com
reflexos na rotina da família: reuniões que o faziam chegar tarde em casa,
telefonemas fora de hora, viagens frequentes, e ela ali, cuidando da casa, dos
meninos e das finanças da família. A luta invadiu o casamento deles e ela se
casou com as causas abraçadas pelo marido operário. Houve a greve de 1979 e
depois a de 1980, quando o marido ficou 41 dias preso no DOPS, só saindo para
ir ao enterro da mãe, dona Lindu. Visitou-o todos os dias. Católica, organizava
missas e vigílias. Foi neste ano que fez um curso de introdução à política
brasileira na Pastoral Operária de São Bernardo. Se este era o caminho do
marido, iria seguir junto. Quando o PT foi criado, costurou a primeira bandeira
vermelha com a estrela branca. Depois passou a imprimir camisetas para o
partido vender e arrecadar fundos. Militava na base, sem buscar holofotes, à
sombra da projeção crescente do marido.
Lula foi
candidato a governador de São Paulo, em 1982, e em 1986 foi o deputado
constituinte mais votado do Brasil. Ela não veio para Brasília, ficou com os
filhos em São Bernardo enquanto ele passava a semana no Congresso. Depois
vieram as três derrotas em disputas presidenciais. Nenhuma foi tão sofrida quanto a de 1989. A
campanha do adversário Fernando Collor contratou a ex-namorada que Lula havia
tido antes de se casarem , Miriam Cordeiro, para dizer na televisão que ele tentara
forçá-la a abortar a filha que tiveram, Lurian. Este episódio violento e
pérfido fez Marisa tornar-se ainda mais zelosa da privacidade da família, mais
avessa às abordagens da imprensa.
Quando
finalmente Lula foi eleito, ela já estava pós-graduada no papel de mulher de um
líder. Sabia que não seria fácil mas talvez não tenha imaginado que haveria uma
cota de desconforto tão grande para ela própria. Por oito anos, com o aneurisma
adormecido, ela suportou, os incômodos do papel de primeira dama. A implicância
da mídia e das pessoas “de classe” foi uma constante. Se ela se vestia
modestamente, era uma jeca. Quando passou a cuidar mais do visual, fez uma plástica e mudou o cabelo, era uma
deslumbrada com o poder. Se vestia vermelho, sectarismo. Se vestia verde e
amarelo no 7 de setembro, populismo. Falava raramente e era criticada por isso.
Mas persistiu, certa de que cada vez que, se falasse, seria apedrejada. Por ter
plantado no Alvorada uma canteiro de flores vermelha em forma de estrela, foi
por longo tempo acusada de revelar assim a confusão entre o público e o
privado. Quando resolveu fazer festas juninas na Granja do Torto, forneceu
pautas suculentas à imprensa. Nas solenidades e nos eventos, estava sempre ao
lado de Lula, discreta porém atenta. E ele, nos discursos, sempre improvisados,
deixando o texto dos assessores de lado, nunca deixava de citá-la, de fazer-lhe
uma referência afetuosa. Este “grude”
incomodava os críticos. Nos oito anos, ela mostrou clara compreensão de seu
papel. Era a companheira de Lula, não uma protagonista política.
Nunca se soube
de ingerências de Marisa em decisões administrativas ou de vetos a pessoas. De
alguns ela podia não gostar, e não gostava, mas nunca destratou ninguém. O que
fazia era separar claramente quem eram os amigos pessoais e quem eram os
colaboradores de Lula. Na intimidade, só os amigos entravam, para os almoços de
domingo. Os bajuladores da “corte”, em busca de relações que poderiam render
prestígio e influência no governo, ela evitava. A cautelosa distância foi
chamada de arrogância.
O governo
acabou e ela talvez tenha pensado que a vida voltaria ao normal. Por algum
tempo, foi quase assim. Lula despachava durante o dia no Instituto Lula e
voltava para jantar em casa, ao anoitecer. Em 2013, começou o calvário final. A
Lava Jato, as prisões de petistas, as notícias aqui e ali de que Lula seria
investigado como proprietário oculto do
sítio de Atibaia e do apartamento do
Guarujá. As investigações finalmente foram oficializadas, alcançando não apenas
Lula como ela própria (que comprara a cota do prédio do Guarujá, da qual
desistiram depois) e os filhos. A partir da condução coercitiva de Lula para
depor, no ano passado, a tensão
tornou-se permanente no lar dos Lula da Silva. A qualquer hora, ele poderia ser
preso. Quando gravações de conversa entre Lula e Dilma foram ilegalmente
divulgadas, conversas em família, inclusive dela, também vazaram. Detalhes do
que havia no sítio frequentado pela família e da reforma no dito apartamento da
OAS foram caudalosamente divulgados e em muitos casos atribuídos a exigências
dela. O PT, estraçalhado, começou a
cobrar a volta de Lula à presidência para reunir seus cacos. A nova candidatura
estava posta mas tudo na vida deles tornou-se incerteza, apreensão e dor. Resistiam, mas o aneurisma não suportou.
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