13 de outubro de 2020
Foto:
Reprodução/YouTube
Originalmente
publicado em THE INTERCEPT BRASIL
Por Rafael Neves
e Rafael Moro Martins
Os procuradores
da Lava Jato no Paraná atuaram nos bastidores para interferir na sucessão do
ex-juiz Sergio Moro nos processos da operação em primeira instância. A
força-tarefa do Ministério Público Federal fez lobby num outro poder, o
Judiciário, para garantir que o novo escolhido para a cadeira do então
recém-nomeado ministro do governo de Jair Bolsonaro fosse alguém que agradasse
aos investigadores.
As articulações
estão explícitas em duas mensagens de áudio do então coordenador da
força-tarefa, o procurador Deltan Dallagnol. Nelas e em várias mensagens de
texto trocadas pelo Telegram em janeiro de 2019, ele elenca os principais
candidatos à vaga de Moro, elege os preferidos da força-tarefa e esboça o plano
em andamento para afastar quem poderia “destruir a Lava Jato”, na opinião dele.
Quando Moro
abandonou a carreira de juiz, em novembro de 2018, logo após a eleição de
Bolsonaro, deixou vaga a cadeira de responsável por julgar os processos da Lava
Jato na primeira instância. A sucessão ou substituição de um magistrado é um
processo comum no poder Judiciário, que tem autonomia para decidir – obedecendo
a um regimento interno.
O que é no
mínimo incomum, nesse caso, é a pressão e a interferência de um órgão externo,
o Ministério Público Federal. Em mensagens de texto e áudio, Dallagnol também
pede a colegas familiarizados com o presidente do Tribunal Regional Federal da
4ª Região, o TRF4, responsável pela Justiça Federal do Paraná, que tentassem
“advogar” junto a ele por uma solução que agradava à força-tarefa.
A ideia
compartilhada por Dallagnol e por juízes federais do Paraná era colocar três
magistrados na posição de assessores de um quarto, o veterano Luiz Antônio
Bonat, num esforço para convencê-lo a disputar a vaga de Moro. “Ele colocou ali
o nome dele por amor à camisa”, narrou Dallagnol. “Então a gente tem que
conseguir um apoio. A ideia talvez seria de ter juízes assessores ali
designados junto a ele”.
A Lava Jato
considerava que Bonat, um juiz com 64 anos e de perfil extremamente discreto
(jamais deu palestras ou entrevistas desde que assumiu o comando da operação,
há quase dois anos), precisaria de ajuda para dar conta das dezenas de
processos que corriam no Paraná. Assim, Dallagnol e equipe buscaram uma forma
de garantir que nem todo o trabalho da operação cairia sobre ele.
O plano
articulado para montar o time de juizes acabou por não sair do papel, mas o
principal foi feito: Bonat foi convencido a disputar a vaga. “Aí ontem os
juízes estavam preocupados e conseguiram fazer, conseguiram convencer o número
1 da lista, o que é ótimo para nós, assim, simbolicamente, a aceitar o desafio
de ir para a 13ª”, celebrou Dallagnol, em áudio.
E, como era
previsto pelos procuradores, Bonat herdou a cadeira de Moro por ser o mais
antigo juiz federal em atividade na jurisdição do TRF4.
Nas conversas,
fica claro que o juiz resistiu a entrar na disputa e que ele foi convencido a
concorrer por colegas e procuradores que “estavam preocupados” com a vitória
iminente de alguém visto com desconfiança pela Lava Jato: Julio Berezoski
Schattschneider, um juiz que atuava em Santa Catarina. Procurados, nenhum deles
quis dar entrevista.
A candidatura de
Bonat surpreendeu a comunidade jurídica. Magistrado com 25 anos de carreira, à
época, ele estava afastado da área criminal havia 15 anos. Até um juiz federal
que atua na região do TRF4, e que falou ao Intercept sob a condição de
anonimato, diz ter estranhado: “Era uma vara difícil, cheia de trabalho,
daquelas que habitualmente ninguém quer pegar e acaba sobrando nas mãos de um
juiz mais novo. E aí aparece um monte de gente mais antiga [na disputa]”, ele
observou. (…)
Com a entrada
formal na política, Moro foi obrigado a passar o bastão dos processos da Lava
Jato. Temporariamente, a operação passou a ser conduzida pela juíza substituta
Gabriela Hardt até que um novo magistrado assumisse a vaga de titular.
Pelas regras de
funcionamento da justiça no Brasil, os processos seguiriam com a 13ª Vara
Federal de Curitiba. Com a saída de Moro, a vaga de titular dessa vara entrou
em disputa. Qualquer juiz da 4ª região da Justiça Federal – que abrange Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – poderia disputar o posto. O escolhido
seria quem tivesse mais tempo de carreira entre os inscritos, seguindo o
regimento do TRF4.
No dia do
anúncio de Moro, procuradores da Lava Jato já especulavam no Telegram quem
sucederia o magistrado. Mas a interferência da força-tarefa no Judiciário só
ganhou forma em janeiro de 2019, quando Dallagnol fez um comunicado aos
colegas:
9 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol
– 18:56:19 – Caros, vamos visitar as pessoas que seria bom que assumissem a 13ª
Vara para convencê-las. Vou levantar nomes bons e vou convidar quem puder pra
irmos estimular rs
Dallagnol –
18:56:24 – Isso é crítico para nosso futuro
Dallagnol parecia
obcecado. No dia seguinte, o então coordenador da força-tarefa apresentou aos
colegas um prognóstico sobre os potenciais postulantes, endereçado
especificamente a Januário Paludo, um dos veteranos da força-tarefa e com quem
Dallagnol contava para ajudá-lo no lobby:
10 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol
– 18:18:59 – Jan, fizemos a reunião. Segue mapeamento
Dallagnol –
18:20:06 – Luiz Antonio Bonat, 1 (21ª Vara Federal de Curitiba) (dois vão
conversar) Taís Schilling Ferraz, 2 (Moro considerava uma opção – ligada a
Gilmar) Eduardo Vandré, 6 (seria péssimo) Loraci Flores (irmão do Luciano
Flores), 8 Marcelo Malucelli, 10 Artur César de Souza, 11 (Londrina) Julio
Guilherme Berezoski Schattschneider, 19 (péssimo, mas parece que não quer mais)
Nivaldo, 37, impedimento ? Danilo, 64, impedimento mas com interpretação pq de
execução Friedmann, 70 Claudia Maria Dadico, 95 (Diretora foro SC, perigosos
vínculos) Antonio César Bochenek, 106 Marcos Josegrei, 111 Bianca Arenhart, 112
Dallagnol –
18:20:38 – Welter, Jan ou Je, Vcs conhecem a Taís Schilling?
Dallagnol –
18:21:42 – Ou conhecem algum destes de POA? Algum é bom? Vcs sondam?
Dallagnol –
18:21:45 – [Imagem não encontrada]
Jerusa Viecili –
18:29:01 – esses se inscreveram? o que são os númeors ao lado?
Viecili –
18:29:32 – conheço o Hermes, fui estagiária dele há mil anos. parece que ele
sempre atuou mais no cível. está no CEJUSCON agora.
Viecili –
18:29:41 – a Tais conheço de vista só. ela é bem conceituada, até onde sei.
Dallagnol –
18:39:02 – não. O risco é a posição 6, o Vandré. precisamos de um coringa,
alguém que se disponha a vir até o número 5 e renuncie se o vandré não se
inscrever
Dallagnol –
18:39:18 – o número do lado é a posição na lista de antiguidade
Viecili –
18:40:05 – entendi
Viecili –
18:47:21 –
http://www.gaz.com.br/conteudos/regional/2018/11/08/133864-juiz_de_santa_cruz_pode_substituir_sergio_moro_na_lava_jato.html.php
Ali Dallagnol
expôs o primeiro alvo da força-tarefa e uma estratégia para tirá-lo da disputa.
Tratava-se do juiz Eduardo Vandré, que trabalhava numa vara federal de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande
do Sul. Ele ocupava o sexto lugar na lista de antiguidade, mas “seria péssimo”
para a Lava Jato, segundo o coordenador.
Os motivos para
a desconfiança foram descritos por Paludo, que afirmou na mesma conversa, mais
tarde, que Vandré era “pt e não gosta muito do batente”.
Com isso em
mente, Dallagnol buscava fazer uma espécie de seguro: garantir a candidatura de
um dos cinco juízes mais antigos, de forma que Vandré ficasse sem chances na
disputa. Paludo detalhou o plano pouco depois:
10 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Januário Paludo
– 19:17:36 – Tais já foi cnj. Vínculos politicos.
Paludo –
19:20:55 –Loraci diz que não quer. Tentei convence-lo. Seria nossa melhor
opção. Bonat é ótimo, mas não tem pique. Alexandre lippel nem pensar. Vandre e
pt e não gosta muito do batente. Marcelo de nardi não é de todo ruim, tem
trânsito, assi, como o Hermes.
Paludo –
19:21:57 – em que ser o bonat. Depois faz permuta.
Deltan Dallagnol
– 19:50:21 – super próxima do Gilmar, segundo o Malucelli
Dallagnol –
19:50:57 – Mas qual a posição do Loraci?
Dallagnol –
19:51:12 – O Bonat pode assumir e pessoas trabalharem por trás, como Gabriela e
Bianca, talvez…
Os comentários
mostram que Paludo e Dallagnol viam Bonat (o juiz federal com mais tempo de
serviço em toda a região Sul) como um instrumento para impedir que um nome
indesejável ficasse com a vaga de Moro. Mas havia um problema: justamente pela
idade, achavam que ele não teria “pique” para assumir os processos da Lava
Jato. Por isso, Dallagnol aventou a possibilidade de que Bonat fosse escolhido,
mas deixasse outros “trabalharem por trás” dele, como juízes assessores.
O assunto voltou
ao Telegram quase uma semana depois, em 16 de janeiro. Dallagnol encaminhou aos
colegas a mensagem de um juiz que chamou de “nosso preferido” para ocupar a
cadeira de Moro: “estou avaliando, sim….temos até segunda…. Conversei com o
Malucelli ontem e ele me disse que conversou com Bonat, e ele disse que não vai
pedir e que nem cogita”, escreveu o magistrado, segundo o relato de Dallagnol.
A mensagem não
deixa claro quem era o “preferido”, mas as tratativas nos dias seguintes
indicam tratar-se do juiz Danilo Pereira Júnior, que já atuava noutra vara
federal de Curitiba. Malucelli é o juiz Marcelo Malucelli, então diretor do
foro da Seção Judiciária do Paraná – na prática, o administrador da unidade.
Àquela altura,
Eduardo Vandré já desistira de concorrer, mas a Lava Jato tinha outra
preocupação. O nome dela era Julio Berezoski Schattschneider, que trabalhava em
Santa Catarina, outro a receber a alcunha de “péssimo” na lista de Dallagnol.
(…)
chattschneider
havia informado o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, instância máxima da
Justiça Federal no Sul do país, que desejava ser transferido para Curitiba, mas
não fazia questão de ficar com o lugar de Moro. Assim, a Lava Jato planejava
convencê-lo a aceitar outra posição que não fosse a de Moro. Se ele não
topasse, haveria um problema: por ser mais antigo, Schattschneider teria
preferência sobre Danilo Pereira Júnior, o favorito da Lava Jato. O juiz Bonat
continuava decidido a não concorrer.
Schattschneider
havia informado o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, instância máxima da
Justiça Federal no Sul do país, que desejava ser transferido para Curitiba, mas
não fazia questão de ficar com o lugar de Moro. Assim, a Lava Jato planejava
convencê-lo a aceitar outra posição que não fosse a de Moro. Se ele não
topasse, haveria um problema: por ser mais antigo, Schattschneider teria
preferência sobre Danilo Pereira Júnior, o favorito da Lava Jato. O juiz Bonat
continuava decidido a não concorrer.
Esse quadro
permaneceu até 21 de janeiro de 2019, último dia para inscrição dos
interessados. A força-tarefa estava tensa porque o desembargador Carlos Eduardo
Thompson Flores Lenz, então presidente do TRF4 (que ironicamente foi cotado
para suceder Moro no ministério de Bolsonaro por ser próximo aos militares),
havia anunciado que os dois nomes preferidos da Lava Jato estavam impedidos de
entrar no páreo.
A razão era um
item do regimento do tribunal que vedava a transferência de juízes para uma
vara com a mesma especialidade daquela em que já atuam.
Dallagnol se
afligiu e pediu lobby sobre Thompson Flores:
21 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol
– 15:27:23 – Welter, mensagem do Danilo: “Oi…vou conversar com o Marcelo e
descobrir. Mas, em princípio, o presidente sinalizou que eu e Nivaldo temos
impedimento regimental, pois são caras de mesma especialidade.
Dallagnol –
15:27:31 – Você não consegue falar com o presidente por aí?
Dallagnol –
15:27:37 – Welter/Jan
Laura Tessler –
15:30:31 – Danilo é da Vara de Execuções Penais e juizado…13ª é vara de
lavagem…nada a ver esse impedimento..salvo engano, no cível eles não colocam
impedimento para remoção entre Vara Civel geral e Vara especializada
(previdenciária, p.ex)
Tessler –
15:30:59 – Presidente do TRF tá viajando na maionese….
Antônio Carlos
Welter – 15:32:48 – Quando falei com o Lenz semana passada ele comentou desse
impedimento. Parece que ele entende dessa forma. De qualquer modo, se eles tem
interesse na remoção, podem pedir e depois contestar no órgão especial a
interpretação
Dallagnol –
15:33:30 – O problema é que acho que Danilo não vai querer aparecer como o
“juiz que está lutando pra ir pra LJ”
Dallagnol –
15:33:35 – Pode cair mal né…
Dallagnol –
15:33:55 – O ideal seria tentar reverter isso na conversa com o presidente,
dizendo que ele é de todos quem mais tem perfil etc
Dallagnol –
15:34:19 – sacanagem isso…independente de LJ, o cara não pode estar condenado a
ficar o resto da vida na Vara de Execuções Penais…
O clima só
desanuviou quase dez horas da noite. Januário Paludo avisou ao grupo que Luiz
Antônio Bonat havia mudado de ideia e decidido se inscrever. No dia seguinte, o
TRF4 divulgou a lista dos inscritos com ele na cabeça. Se Bonat não mudasse de
ideia até a meia-noite do dia 24, dali a três dias, a vaga seria dele. Mas
Schattschneider vinha na segunda posição. Por isso, a articulação continuou
para que Bonat não desistisse. (…)
Em viva voz, o
procurador faz duas grandes confissões. Juízes federais alinhados à Lava Jato
“estavam preocupados” com a possibilidade de que Schattschneider ficasse com a
vaga de Moro, segundo Dallagnol, e, por isso, conseguiram convencer Bonat a se
inscrever de última hora, “por amor à camisa”.
Esses
magistrados, que não são identificados por Dallagnol no áudio, lançam uma
suspeita sobre Schattschneider: a de que ele havia tentado iludir a
corregedoria da Justiça Federal sobre sua intenção de suceder Moro. Procuramos
Schattschneider em seu gabinete para que comentasse a suspeita levantada pela
corregedoria, mas ele não respondeu às tentativas de contato.
Para manter o
interesse de Bonat no cargo, os juízes e o MPF decidiram tentar algo que
Dallagnol havia sugerido em 10 de janeiro: transformar o magistrado numa
espécie de líder de um grupo de três outros juízes que ajudariam a dar
agilidade aos processos. Segundo o áudio de Dallagnol, quem estava à frente
desse plano era o juiz Marcelo Malucelli, mas a cúpula do TRF-4 já tinha se
manifestado contra a ideia.
Procuramos
Malucelli para que comentasse a declaração de Dallagnol, mas o juiz disse não
saber que Bonat foi convencido de última hora e não esclareceu se articulou ou
não o plano de designar juízes assessores para ele. “Várias medidas de auxílio
foram tomadas pela corregedoria do TRF4 para a 13ª Vara de Curitiba, antes e
depois da saída do juiz Moro. À direção do foro incumbe apenas cumpri-las”,
respondeu.
A preocupação
dos procuradores se dissipou no dia seguinte, 23 de janeiro, quando eles ficaram
sabendo que Schattschneider havia desistido da vaga. No fim das contas, Bonat
assumiu a 13ª Vara no dia 6 de março.
Entregamos a
transcrição integral dos áudios e um resumo cronológico detalhado das mensagens
de texto ao TRF4, à Justiça Federal do Paraná e ao MPF. Aos órgãos do
Judiciário, perguntamos se eram verdadeiras as afirmações de Dallagnol de que
os juízes só convenceram Bonat a concorrer à vaga de Moro de última hora porque
“estavam preocupados” com a chance de vitória de Schattschneider e de que a
direção do tribunal discutiu nomear três juízes assessores para “dar um apoio”
ao magistrado veterano à frente da Lava Jato.
Também
perguntamos se o tribunal não considera que as conversas narradas por Dallagnol
são uma interferência indevida no Judiciário e fizemos o mesmo questionamento à
força-tarefa da Lava Jato. Ao MPF, perguntamos se os procuradores chegaram a
visitar candidatos para a vaga de Moro, como disse Dallagnol, e se o órgão não
considerava inadequado o lobby sobre os juízes para viabilizar os nomes de sua
preferência e, depois que esse plano falhou, para garantir que Bonat não
desistisse da vaga.
Todas as
questões ficaram sem resposta. Além de não se manifestar institucionalmente, o
TRF4 não emitiu posicionamento de nenhum dos juízes citados nas conversas, aos
quais direcionamos perguntas específicas. O MPF também preferiu não se
manifestar.
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