Xico Sá (Foto: Felipe Gonçalves / Brasil 247)
Jornalista e escritor faz um balanço triste
do Brasil pós-golpe, mas se mantém esperançoso de que o pior vai ficar para
trás com a eleição de outubro
16 de abril de 2022
Por Alberto Cantalice, Olímpio Cruz Neto e Pedro Camarão, da Revista
Focus
Xico Sá é um jornalista que fala o que pensa de forma direta, sem
rodeios. Justamente por esse motivo, acredita que tem perdido espaço para falar
durante o governo Bolsonaro. “Quem não fez o joguinho da mídia de bater
isoladamente e depois assoprar, foi perdendo espaço”, constata.
Xico é Francisco Reginaldo de Sá Menezes, cearense nascido no Crato, que
começou a carreira de jornalista no Recife e seguiu para São Paulo nos anos
1990. Escritor de sucesso, comentarista esportivo, cronista, ele se declara
eterno repórter. Cobre a política nacional desde a Assembleia Constituinte. E
daí não ter dúvida em apontar que o país vive hoje o seu pior momento.
Crítico de visão acurada sobre a realidade brasileira, Xico é capaz de
enumerar “as muitas bizarrices da política brasileira”, mas nenhuma se
assemelha ao que é o governo Bolsonaro nem como ele prejudica o país e
inviabiliza o país.
O veterano jornalista diz que derrotar Bolsonaro em 2022 é a grande
missão de todos os democratas. E diz não apenas ser favorável à formação de uma
frente ampla, mas estabelecer alianças as mais amplas possíveis. “Estamos no
inferno. Mais quatro anos de Jair Bolsonaro acabariam completamente com o
Brasil”, alerta.
Ele avalia que a censura imposta pelo fascismo bolsonarista fez com que
a classe artística aprendesse na pele a importância da política e a se
posicionar. Por isso, tantos artistas agora estão abertamente contra Jair
Bolsonaro. A seguir, os principais
trechos da entrevista:
Focus Brasil — O governo Bolsonaro parece estar chegando ao fim, para o
nosso alívio. O que você pode falar sobre esse período tão impressionante da
história?
— Que anos malucos, meu velho... Primeiro, tomara que a sua premissa
esteja correta. Tomara que seja realmente o fim. Ontem, eu fui no lançamento de
uma revista chamada Olympio...
— De um pessoal lá de Minas Gerais...
— E o Milton Hatoum fez uma fala e foi muito parecida com essa premissa.
Só que vez por outra “batia” um pânico e ele dizia “porque eu não sei o que
será de nós, principalmente os mais velhos, com quatro anos a mais disso”.
Seria o apocalipse, o fim do mundo. Espero que estejamos realmente caminhando
para o fim dessa história. É um período, mesmo dentro de toda a bizarrice da
política brasileira, como um museu de absurdos. Como repórter, cidadão e todas
as minhas possibilidades de existências, eu nunca vi nada que se comparasse,
mesmo você pegando o pior de cada época... Isso eu estou falando com a visão de
um repórter que acompanha a política brasileira profissionalmente desde a
Constituinte. Da redemocratização para cá, não temos... Mesmo nos piores
momentos, caso, por exemplo, do governo Collor, de toda aquela crise nacional,
mesmo assim eu acho que nada se compara a este período.
— Nem na ditadura militar, nenhum presidente, nenhum ministro, falaria as loucuras que os porta-vozes do
governo Bolsonaro, incluindo o próprio, fazem. Esses impropérios, essa
maluquice de elogiar a cobra que estava com a Miriam Leitão… Estamos no reino
do inominável. Nunca houve algo assim, com os fascistas tão descarados dessa
maneira?
— Sim, perfeito. E os exemplos são diários. Por não serem mais
causadores de espanto, a gente já caiu numa rotina. Mas você pega os casos de
censura, boicotes, cancelamentos de financiamentos públicos ao cinema – são
milhões –, shows... Então, é uma operação que vai nos custar muito caro. São
quatro anos de censura que sequer ganhou esse nome porque de tão comum,
banalizou-se e não é mais manchete. Cancelaram exposições, vetaram
financiamento de filmes… E, já esticando para o campo da ciência, inviabilizou-se
projeto de pesquisa… Isso não é mais notícia. O que fizeram com o CNPq, com
todos esses órgãos... Eu acho que a nossa maior incapacidade como jornalistas,
no momento, é não conseguir continuar tornando isso manchete.
— Por quê?
— Porque o festival de absurdos engoliu isso ao ponto de que se eu for
vender como repórter uma censura de uma exposição, o editor vai dizer: “Pô, tá
louco, cara”. É preciso de coisas muito mais graves para negociar uma manchete
com meu chefe de reportagem. Este governo e os bolsonaristas conseguiram tornar
isso tão banal com o mesmo método da ditadura militar. Virou banal e saiu das
manchetes. O absurdo tem que ser 10 mil vezes superior para ser notícia. São
quase quatro anos até agora, como nunca vistos.
— Gostaria de lhe perguntar sobre a atuação da grande imprensa no debate
político. A imprensa esclarece ou mais atrapalha o debate político no Brasil?
— A imprensa cometeu o gravíssimo erro de normalizar o bolsonarismo
desde a campanha [de 2018]. Acho que passou na cabeça de todas as direções de
jornais o seguinte: “Olha, estamos diante de um acontecimento normal,
democrático, eleição, e vamos tratar todos com a devida igualdade e etc…”.
Desconsideraram todo aquele festival de absurdos do bolsonarismo. Então,
Bolsonaro passa a eleição toda sendo tratado como um democrata, sendo
normalizado. Em momento algum você teve sequer 10% de investigações do que se
fez, por exemplo, na primeira eleição pós-ditadura para presidente da
República, em 1989. Não se fez investigação nenhuma. Não teve investimento de
imprensa em tratar o Bolsonaro como aquele resquício autoritário que poderia
dar nessa merda toda que deu.
Houve uma tremenda normalização, que foi ampliada quando veio o Paulo
Guedes com toda a sua cartilha ultra-neoliberal. Acho que aí o Bolsonaro ganhou
uma licença premium de toda a imprensa, ele passa a ser tratado com tapete
vermelho. [Gargalhadas] Vermelho não, no caso dele é outra cor... Mas o fato é
que ele passa a ser tratado com toda a distinção e normalidade. Faz-se uma
cobertura do governo Bolsonaro falando sobre “ala militar”, “ala técnica” e não
sei o quê, com uma seriedade como se estivessem tratando o maior democrata do
mundo. Eu acho que esse erro da normalização segue em voga. E, vez por outra,
passa por um susto. Como é o caso agora com um dos filhos que fez essa apologia
à tortura no caso da Miriam Leitão. É um absurdo. Nesses momentos de pico,
quando o absurdo vai para um nível sem limite, é que toda a imprensa passa a
viver, novamente, um “susto”. Mas o tratamento é muito nobre, não se cobre o
governo Bolsonaro como se deve.
— E isso em todas as áreas…
— Sabe, tem esses casos todos e basta você pegar o Ministério da
Cultura, ali você tem um ninho de coisa ruim que é impensável. E a imprensa
cobriu isso tudo, até agora, ainda de forma muito superficial. Desde aquele
cara da Cultura [Roberto Alvim] que fez aquele culto nazista... Fomos, enquanto
imprensa no geral, dando [esse tipo de caso como] pequenos acontecimentos. Em
hora nenhuma teve uma parada para se levar muito a sério, como deveria ter
ocorrido. Tanto que, mal ou bem, Bolsonaro vai se arrastar até o dia da eleição
ainda muito forte.
— É curioso porque você falou dessa coisa da tortura da Miriam Leitão,
mas quando o Bolsonaro falou aquele impropério no dia do impeachment da Dilma,
que votava em homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra — “o terror de Dilma
Rousseff —, e ainda falou rindo, com exceção da imprensa estrangeira e de
alguns veículos, como por exemplo, o El País Brasil [que deixou de existir], o
resto da mídia não ficou horrorizada.
— Não, não… Ficou dentro da “festa democrática”. Seguiram comemorando a
queda da Dilma. Isso não atrapalhou nenhum segundo. Não foi nem um box na capa
ressaltando aquele absurdo. Nada. Passou batido dentro da “festa” pela
derrubada da Dilma. Isso não deu nem a ideia de um “susto”. Isso é que é um
absurdo. Essa normalização é que foi nos trazendo até essa história que a gente
vê hoje muito explícita.
— Quanto você sente que o Brasil piorou? O que te deixou mais perplexo?
— Foi tudo. Acho que profissionalmente teve um abalo direto porque eu e
infinitas pessoas perdemos trabalhos, espaços de fala, deixamos de publicar
livros, de fazer filmes, roteiros... Acho que temos um prejuízo que ainda não
dá para dimensionar o tamanho. Mas, se você consultar, nove em cada dez
artistas do Brasil, ou jornalistas que estavam na área editorial, ou metidos em
outras coisas que não fosse o jornalismo de redação, todos nós perdemos muito.
Não sei como chamar, mas é uma espécie de censura, cancelamento,
inviabilização... Todos nós perdemos muito, logo de cara. Esse talvez tenha
sido o meu primeiro susto. Acho que por conta dos meus posicionamentos públicos
explícitos, em momento algum normalizando esse tipo de governo, começa a notar
que está perdendo coisa, palestras, eventos que se fazia em empresas ou em
instituições públicas... Eu acho que todo mundo que se expôs e não ficou
fazendo o “joguinho” da mídia de dar uma “porrada” isolada aqui, e depois
assoprar e ainda normalizar de novo, acho que todo mundo que se posicionou mais
explicitamente sofreu isso de cara. Pode-se questionar que esses são prejuízos
particulares, mas não são. Eu acho que é de uma coletividade enorme, da
produção cultural do Brasil, editorial, cinematográfica, musical... É uma
imensidão que a gente ainda não fez a conta, não dimensionou o tamanho desses
prejuízos, dos filmes que não saíram, das músicas que não foram editadas, dos
livros e etc. Existe um buraco aí, um prejuízo para o país equivalente à
censura da época da ditadura. E o prejuízo é maior porque você não terá, pelo
menos na história imediata, isso como um “listão” da censura ou “listão” de
coisas que foram proibidas. Isso vai ficar na conta da economia, do debate
ideológico, não vai ficar como um grande prejuízo artístico e cultural do país.
Então, o primeiro baque que eu senti foi esse.
— A democracia corroída aos poucos.
— Sim. Tem a qualidade da democracia também... A democracia fica
precária, passa a ter todas as defesas enfraquecidas, em todas as causas. Seja
dos direitos humanos ou na causa indígena. Em todos os segmentos, existe um
enfraquecimento da democracia. Isso foi feito muito, na prática. Esse não é um
comentário ideológico. Se você for pegar instituições, entidades, que eram
financiadas por dinheiro público, seja lá no semiárido de Pernambuco... Pega
uma entidade que cuidava da política de convivência com o semiárido, essa
entidade por ser acusada de ligação com a esquerda, com o “comunismo” ou o que
quer que seja, ela foi alijada de financiamento público e saiu do jogo. Na
esteira disso, você pode ver exemplos semelhantes em qualquer parte do Brasil,
como na Amazônia, com entidades de proteção aos indígenas. Existem exemplos
muito nítidos por todo o Brasil de enfraquecimento da democracia.
— O paralelo é correto e é mais grave agora porque na ditadura, por
exemplo, mesmo com a censura e com todo o tipo de perseguição aos dissidentes
políticos, a Embrafilme produziu filmes como “Pra Frente Brasil”. Você tem
razão quando diz que o nível de perseguição era outro. E gostaria de aproveitar
para lhe perguntar exatamente isso, a guerra desencadeada pelo Bolsonaro na
cultura. Gostaria que você comentasse um pouco sobre isso.
— Eu acho que a primeira grande vítima foi o professor, a professora, a
escola, a sala de aula. O primeiro grande alvo, a primeira grande perseguição,
quem sofreu nem foram os artistas. É uma coisa que vem da campanha, da “escola
sem partido”. Desde o início do governo Bolsonaro, tivemos professores sendo
filmados, sendo execrados… Qualquer livro que não fosse religioso, mas fosse
indicado para leitura, o professor tinha seu nome exposto em rede social como
se fosse um “comunista”, um “imoral” ou um “indecente”. Então, acho que a
primeira grande perseguição quem sofreu foi o pessoal da escola.
Depois, o governo pegou pesado nos artistas, mas num segundo momento.
Foi quando entrou tudo isso o que eles chamam de guerra cultural. Todos os
mecanismos de financiamento foram desmantelados e, não só isso, os equipamentos
também. Nesse pacote, temos a Cinemateca, deixada tão às moscas que enferruja,
filmes são perdidos, tem aquele incêndio... Isso é para dar o exemplo de um
equipamento que sofreu esse tipo de coisa. Então, você tem um desmantelamento
geral. É uma política deles, bem-sucedida, de frear, de acabar com qualquer
financiamento. O cinema é um exemplo. Na ditadura, tínhamos o Glauber Rocha num
diálogo maluco com o [Ernesto] Geisel, até as polêmicas com os artistas eram em
outro nível. Veja, estou comparando com a fase carniceira da ditadura. Então, é
muito maluco o que a gente viveu nesse campo.
— É assustador…
— Na campanha, tivemos todos esses sintomas. Quando eu falo na escola e
nos artistas, você pega aquele evento, por exemplo, do Santander em Porto
Alegre, da exposição que foi censurada. Naquela exposição, havia os dois
mundos, a visita das escolas e os artistas. Ali, foi um anúncio muito explícito
do que viria na prática. E veio e veio forte. Não é uma viagem teórica minha ou
de qualquer diretor de cinema ou escritor que esteja desgostoso com o que
aconteceu. A verdade é que os caras brecaram qualquer política pública para o
setor cultural.
— Qual é a sua perspectiva sobre o futuro do país? Você viu a ascensão,
a esperança daquele país do futuro se concretizando e acabamos neste buraco.
— Está sendo muito triste ver tudo isso. Eu tive filho de maneira
tardia, agora há cinco anos, justamente nessa hora, pô [fala rindo, mas em tom
de lamento]. É tudo muito triste. Diante do que a gente passa hoje, antes nós
achávamos que era apenas uma melhora do país, mas na verdade foi um belo de um
sonho que vivemos do primeiro governo Lula por diante. Vivemos até um certo
alívio, pelo menos na discussão democrática com o Fernando Henrique [Cardoso].
Então, uma certa civilização, digamos assim. E nos deparamos com isso agora. Dá
uma ideia muito triste. Quem tem mais de 50 anos, eu acho que tem aquela ideia:
“Pô, vamos ter que refazer, vai ser uma mão de obra ‘danada’ para reconstruir”.
Mas diante de toda a desgraça, estou animado no sentido da reconstrução mesmo.
E aí entra o cidadão, o pai, o jornalista. Eu acho que a Irene [filha de Xico]
viveu inocentemente essa barra pesada do pós-Golpe para cá e eu vivo hoje essa
ideia animadora de reconstrução.
O drama agora é ganhar a eleição e depois ter todo o embate. Acho que a
esquerda vai viver uma disputa por espaço, vamos ter uma cobrança grande, mas
eu quero que haja um belo embate nessa reorganização para refazer o país. Tem
toda essa rede de proteção social e de direitos humanos que vai precisar ser
reconstruída. E vamos ter uma disputa por espaço, quem vai ter mais espaço,
menos espaço. Tudo isso é discussão para o próximo ano, para começo de mandato.
Até agora, a gente tem uma obrigação moral, cívica, democrática como nunca
tivemos que é ganhar a eleição com a aliança possível. Eu acho que a aliança
deve ser até no limite do democrata — “Ah, você é democrata? Vamos então ganhar
a eleição”.
Vamos sair do inferno e quando a gente subir ali o primeiro degrau do
purgatório, a gente começa a discutir com organizações não governamentais, com
toda essa rede democrática — sindicatos, associações — com toda essa rede que
nos deu a ilusão de um grande país que a gente estava construindo. Eu acho que
o “quebra-pau” é depois. Em 2023, a esquerda quebra o pau lindamente e vê o
rumo do tipo de reconstrução que vai ser feito. Mas até outubro, acho que há um
grande compromisso com juntar os democratas e as democratas e ganhar a eleição.
Eu nunca pensei que uma eleição fosse tão importante como essa agora porque não
é uma eleição normal, é quase um ato de exorcismo. É uma coisa religiosa, nesse
sentido. É um plebiscito, democrata ou não democrata. Não tem conversinha, o
resto é gourmetização. É muito sério o que a gente está passando para ficar
gastando com picuinha. Não é hora de picuinha.
— Vi nas redes sociais você defendendo a ampla aliança, inclusive a
união com o Alckmin. Você já disse que continua achando o Bolsonaro muito
forte. Então, gostaria que você destrinchasse. Por que você é um entusiasta
dessa aliança ampla?
— Olha que eu já fui cheio de frescura para alianças em outros pleitos.
Eu sempre fui: “Ah, não, mas esse cara não porque ele aprontou isso, fez
aquilo...” Mas o cenário, essas pesquisas ainda com o Bolsonaro beirando a casa
dos 30%, essa engrenagem que ele fez agora com o Valdemar Costa Neto, o
Centrão, pesadíssima… Não podemos desconsiderar que é o cara que tem a máquina,
o cofre. Num ano eleitoral, no Brasil, é uma coisa que conta muito,
historicamente. Por conta de tudo isso, e desse cenário fascista, não é
brincadeira, não é pra gente ter a frescura que tivemos. Já foi um luxo ter
muita frescura em relação a alianças em eleições passadas. Foi justo. Mas esse
ano é pra deixar de lado, juntar democrata e ganhar a eleição. Depois quebra o
pau dentro da esquerda, da direita, em todos os setores democráticos, por
espaço. Acho que isso tudo é uma linda quebradeira para depois da eleição.
Nessa, a gente não pode se dar ao luxo de recusar um apoio de um democrata.
Mais quatro anos essa desgraça, porra, tenho dó dos nossos filhos. Eu acho que
eles não merecem uma largada de formação com isso. O risco é muito grande.
Vamos guardar a briga entre nós para logo mais. A gente é bom de briga e vai
brigar muito por espaço, pelo tamanho de cada um na reconstrução. Agora, temos
que apostar na solução democrática. Temos que fazer como o poeta e escritor
pernambucano Marcelo Mário de Melo. Ele foi torturado, sofreu para cacete na
ditadura. E define a aliança de agora da seguinte forma: “Vamos fazer uma aliança
até doer um pouquinho. Mesmo doendo um pouquinho a gente faz”. Então, o limite
agora é até doer e depois vemos o que fazemos quando estivermos livres dessa
praga que está aí.
— Como a história tratará Sérgio Moro e Deltan Dallagnol?
— Na mais otimista das previsões, eu não imaginava que seria tão rápido.
Eu achava que a credibilidade deles, tendo como avalistas toda a mídia
hereditária dos grandes jornais... Porque era muito forte a sustentação deles.
Você tinha um Jornal Nacional abrindo aquela imagem daquele duto soltando
dinheiro todos os dias às oito da noite, para todas as famílias brasileiras,
durante anos e anos e anos. É quase uma corrente religiosa, não é nem uma
questão de Judiciário ou de mídia. É quase uma seita pesada. Teve isso entrando
em casa quase que como um culto diário durante anos. Então, bendito seja o
hacker, que ganhe o reino dos céus... No mínimo, a gente teria que estar
discutindo durante a eleição a credibilidade deles ainda em alto nível. Então,
quando eu digo bendito hacker é nesse sentido. Bendita Vaza Jato que nos trouxe
todos aqueles diálogos escabrosos revelando que aquilo não é Justiça, não é
Ministério Público. Foi um grande conluio.
— Bolsonaro conseguiu uma coisa que há muito tempo não se via. O último
momento em que a gente viveu uma efervescência em que artistas colocaram a cara
à tapa foi na campanha de 1989. E agora, a gente tem de novo isso, com gerações
variadas. Como vê esse envolvimento dos artistas?
— Acho que toda a classe artística aprendeu. Quem não sabia ou dizia —
“ah, eu não misturo a minha música com política... não misturo meu show, meu
cinema, eu faço uma literatura solene que não se mistura com o dia-a-dia” —,
quem pensava no artista distante disso tudo aprendeu agora, definitivamente. Eu
acho que não é só por bondade que toda a classe artística está aí. É porque
aprendeu. Sofreu as consequências pesadas. Tivemos uma pedagogia agora do que é
política, do que ela pode e do efeito dela em qualquer segmento, como nunca
tinha ocorrido. Mesmo muitos artistas que não estiveram com a esquerda em 2018,
que estavam do outro lado — são bem-vindos nessa hora —, sentiram o que é a
ideia de uma política fascista. Eles sentiram para valer. Mas, realmente, você
pega as imagens, elas lembram muito o segundo turno de 1989. Mas eu creio que
de forma mais politizada dessa vez porque cada um dos artistas sabe 10 exemplos
do que é seguir com o Bolsonaro daqui por diante.
— E a rejeição nordestina ao bolsonarismo. É herança do Lula?
— Cara, é impressionante. Eu acho que isso ajudou até... Tem sempre uma
discussão sobre o que seria o Nordeste, se há uma identidade entre os nove
estados, o que seria essa ideia de ser nordestino, de nordestinidade. É louco
porque se a gente não tinha um traço que unisse os nove estados, a gente teve
com Lula para cá, que é essa escolha muito bem definida e já de cara pelas
candidaturas da esquerda, a partir dos governos do PT. E o mais interessante é
que ela passa por todas as classes sociais, desde o cara do semiárido até uma
classe média metropolitana mais metida à besta. Podemos dizer que essa
predileção pela esquerda é um traço comum entre todos os estados nordestinos. É
muito por conta do legado, da história, porque qualquer família tem uma grande
história para contar. Na minha família, só eu havia entrado na universidade
dentro de uma família entre “milhões” de primos. Foi no governo Lula, que a
primeira pessoa da minha família, depois de mim, entrou na universidade. Em
outras famílias, foram as primeiras pessoas. As histórias são muito concretas.
O cara da bodega que passou a vender mais, até o desconfiado que achava que
Bolsa Família era esmola. Ele viu que aquilo em alguns lugares era, na prática,
a invenção do capitalismo. Eu tenho um
tio, bodegueiro num lugar chamado Sítio das Cobras, em Santana do Cariri, lá no
Sul do Ceará. Nesse lugar, vivia-se ainda de um certo escambo, de troca de um
dia de trabalho por uma mercadoria. Ou de uma mercadoria por outra… E com o
pouco dinheiro que foi com os programas sociais, tivemos na prática a invenção
do capitalismo nos anos 2000. Tudo aquilo que o cinismo de uma certa classe
média da metrópole achava que era esmola vira, praticamente, a invenção do
capitalismo em alguns lugares. Eu acho que esse apoio majoritário dos
nordestinos à candidatura do Lula é pura memória. Pura memória. Toda família
tem um mar de histórias para contar sobre isso.
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