O linguista e colunista do 247 Gustavo Conde comenta algumas características da obra de Belchior, compositor morto há um ano; Conde afirma que "Belchior constrói scripts que conduzirão toda a sua obra de maneira quase obsessiva"; para o linguista, o compositor "lida com dicotomias retoricamente muito poderosas e geradoras de energia narrativa: o velho e o novo, o passado e o presente, o conhecido e o desconhecido, o contemplado e o contemplador, o cantor e o ouvinte, a origem e o fim, o popular e o erudito e a urgência e o vagar"; "esses contrários são as molas narrativas que lançam em cena um sujeito tomado por uma tensão filosófica incessante" conclui Conde
30 DE ABRIL DE
2018
Gustavo Conde,
247 - A música popular brasileira tem em Belchior um de seus momentos mais
densos. O compositor cearense impôs ao cancioneiro brasileiro uma temática
complexa, ousada e de forte apelo popular. As letras de Belchior ultrapassam a
força da própria canção e invadem o regime das citações sociais de maneira
fragmentária e destacada.
É uma
organização discursiva espontânea e singular, muito pouco comum para um
letrista pertencente ao universo da indústria fonográfica e à cultura popular
das narrativas urbanas. Belchior ultrapassa fronteiras formais, instala uma voz
poderosa na cena musical e cria um discurso filosófico repleto de intertextos
que violenta a percepção do ouvinte tradicional da canção, sugerindo uma ação
crítica deste ouvinte, seja com relação a sua existência enquanto sujeito da
história, seja com relação à própria canção, numa dialética complexa e de
caráter mobilizador.
Belchior
escolhe com muita precisão a temática que vai servir de condutor para esta
pletora de sentidos. Ele faz uso, em primeiro plano, da história. Suas canções
são fortemente contextualizadas no tempo e no espaço. O Brasil dos anos 70 está
lá como em poucos outros lugares: as migrações internas, o preconceito, a
utopia, a opressão, a cultura como fonte de resistência, a plurivocalidade da
canção popular (que se desdobra em tema), a cena familiar e passional típicas
de um regime de exceção e exclusão, a amizade revolucionária, a sutileza
avassaladora das metáforas que driblam a censura do próprio ‘eu’, enfim, uma
organização temática que vai produzir um significado muito peculiar de unidade
formal, porque, dentro da sua multiplicidade, vai servir sempre a um sentido
fundador e onipresente: o sujeito que não se enquadra nas convenções sociais
mas que ao mesmo tempo as respeita e as investe de delicadeza e humanidade.
Em um segundo
plano formal, Belchior constrói scripts que conduzirão toda a sua obra de
maneira quase obsessiva. Ele lida com dicotomias retoricamente muito poderosas
e geradoras de energia narrativa: o velho e o novo, o passado e o presente, o
conhecido e o desconhecido, o contemplado e o contemplador, o cantor e o
ouvinte, a origem e o fim, o popular e o erudito e a urgência e o vagar.
Todos esses
contrários são as molas narrativas que lançam em cena um sujeito tomado por uma
tensão filosófica incessante, que estabelece um regime de temporalidades
psicológicas vertiginoso, em que os espaços para distensão serão os momentos de
resolução das canções, em geral seus finais, em que o eu cancional consegue
respirar em meio às suas infinitas indagações existenciais.
Belchior
também postula um eu cancional dotado de extrema personalidade, persuasivo,
invocador, mobilizador, atentador. Um eu que quer o tempo todo tocar e invadir
o espaço de seu outro, seja o objeto desejado na canção, seja o próprio ouvinte
da canção. Isso se materializa numa dicção fortemente interpelativa,
interlocutória, dialógica. O eu belchioriano é invasivo, revolucionário e
dotado de extrema energia simbólica e física – pois ele busca e se debruça via
sub narrativas nesse ‘outro’ que habita a canção.
O eu
belchioriano, no entanto, vai além. Ele se estilhaça e promove um discurso
polifônico, distribuindo a voz múltipla que habita o coração do compositor. A
potência de um eu tão complexo e, por vezes, difuso acaba por configurar uma
voz extremamente inquieta, como sói acontecer, por exemplo, em Dostoiévski. O
eu cancional de Belchior adentra essa sofisticação literária e possibilita essa
multiplicidade vocal que, como em Dostoiévski, pode, às vezes, ceder espaço
autoral às próprias criações que emanam de uma mente concreta e localizável no
mundo (Antonio Carlos Belchior e/ou Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski). Em suma,
em alguns momentos um dos vários eus coadjuvantes de Belchior toma posse da
narrativa cancional e joga o protagonista para uma posição narrativa secundária
(isso acontece em “Paralelas”).
Belchior,
portanto, não propõe um eu cancional onipresente apenas: ele propõe um regime
de eus. Outra consequência dessa formalização enunciativa é uma voz concreta do
intérprete de si mesmo Belchior que acabou por se tornar uma referência
estética de projeção vocal. Belchior fala enquanto canta. Ele discursa, acelera
os tempos, comprime a prosódia, amplifica a métrica, modula a colocatura, busca
a “falha” como expressão, adensa o timbre, manipula o curso natural das
resoluções rítmicas, raspa a glote em busca de profundidade passional, alterna
coloquialismos, inverte posições sintáticas – aqui, já numa contaminação de sua
própria concepção intelectiva das canções como unidades de sentido e de tensão.
Por fim,
Belchior inaugura um ethos cancional peculiar, comum aos desbravadores de
sentido, por assim dizer. Um ethos é um modo de dizer, uma dicção específica
dotada de um tom específico que produz um efeito novo com relação ao conteúdo
ali propagado. A título de ilustração, eu colocaria entre os desbravadores de
sentido, Darwin, Freud e Marx. Esse autores não foram só autores: eles fundaram
discursividades, com suas respectivas maneiras de narrar as próprias
descobertas científicas.
À sua maneira,
Belchior é um fundador de discursividade. Ele planeja sua peça cancional dentro
de um rigor estético muito evidente, mas ao interpretar a si mesmo com sua voz
única, ele intensifica ainda mais o sentido geral de seu enunciado.
Belchior é até
mais que um intérprete de si mesmo no sentido estrito. Sua própria vida foi
tomada pela força de sua obra. Como suas letras já relatavam uma autobiografia
fragmentária que se confundia com sua própria vida de compositor e cantor
celebrado na cena musical, o desdobramento de ambas, vida e obra, tomou o
destino de assalto.
Belchior que
amou viajar pelo Brasil e fez disso um tema recorrente em suas canções, acabou
ele mesmo confinado em um país vizinho – o Uruguai – para viver seus momentos
finais como indivíduo de carne e osso. Projetos interrompidos, legado mal
resolvido, legiões de fãs órfãs antes mesmo de sua despedida, tudo isso poderia
muito bem compor um desdobramento de sua temática cancional. Aliás, de uma
certa maneira, tudo isso está lá, edificado em versos premonitórios e de
raríssima beleza e força.
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